A divina comédia é mesmo fonte constante de inspiração. Assim tem sido através dos séculos. Já tive oportunidade de comentar, neste espaço, algo da tradução para o português de José Pedro Xavier Pinheiro. Volto à obra-prima, original e versão, para ressaltar mais alguns versos que suscitam questões sobre linguagem e tradução.
Estamos agora não no inferno, mas já no paraíso, último estágio da viagem de Dante pelos três planos.
Lemos ali, no Canto XX, diálogo entre Dante e a águia, símbolo da justiça. A ave procura responder a uma questão suscitada pelo poeta, sobre a presença no Céu de alguns espíritos de fé supostamente duvidosa. A conversa tange temas referentes ao entendimento real de conceitos ocultos detrás das palavras.
Diz a águia: “És como quem da cousa o nome vero/ Aprende; mas inota fica a essência,/ Se não a explica espírito sincero” (versos 91 a 93). A interpretação deve sempre mediar entre a palavra dura — o nome vero — e sua essência, seu sentido último, que, no fundo, lhe dá utilidade.
Mas será que o tradutor, mesmo os melhores do ofício, conseguiriam surpreender o autor no ato mesmo de sua escritura original? Conseguiriam, assim, perscrutar a própria essência da escritura?
É fato na tradução que a estruturação do texto e as intenções do autor são plenos de sentidos que nem sempre são captados pelo leitor e, antes, mesmo pelo tradutor. Daí os seguidos desencontros, senão mal-entendidos, entre original e tradução. Desconcertos, enfim, praticamente inevitáveis.
A tradução será sempre uma entre tantas outras infinitas possíveis. A menos que venha um espírito sincero a explicar a essência. Mas mesmo assim, quem entenderá a explanação? E qual será o índice de acerto desse espírito sincero?
Ao tradutor, sempre caberá buscar sentidos ocultos — a essência? — nas nervuras finas e salientes do texto. Terá sempre que deixar seu olhar escorrendo diligente ao longo do papel, em esforço constante de interpretação. Desconfiando, sempre, da impaciência que tem o texto de mostrar-se. E buscando não necessariamente a verdade evidente, mas a versão hipotética. Será essa estratégia mera desmesura ou a busca real da essência?
Em outro ponto do paraíso, no Canto XXVI, lemos a fala de Adão a Dante, discorrendo sobre a impermanência das coisas humanas e, em especial, das línguas: “Antes que a gente de Nemrod consinta/ Em meter mãos à obra interminável,/ A língua, que falei, se achava extinta” (versos 124 a 126); e “A humana fala a natureza expressa;/ Por ela o modo de falar deixado/ Ao homem está, segundo lhe interessa” (versos 130 a 132).
Não é pouca coisa que o próprio Adão nos fale, via Dante, da evolução das línguas. Ele que articulou a língua original humana agora via, já no paraíso e milênios distante de seu período terreno, a lenta e gradual evolução das línguas. Adão apontava o óbvio, talvez com um travo de tristeza: sua língua original já não existia nos tempos da Torre de Babel, ou seja, vários séculos após sua morte (sendo, aqui, claro, muito conservador na contagem do tempo). Uma língua a menos na Babel, o que, ainda assim, certamente não lhe reduzia a confusão.
No segundo terceto (130-132), Adão manifesta sua visão — de um ponto de vista deveras privilegiado, aliás — sobre o caráter da fala humana. Qualifica a língua como obra da natureza. Mas especifica que cabe ao homem dar-lhe sua própria direção, “segundo lhe interessa”.
É essa direção, entre tantos outros aspectos, que caberá ao tradutor identificar em cada texto específico, segundo lhe interesse.