Há uma zona literária no campo da tradução. Zona inexplorada, mais humana que outras. Zona em que proliferam fatores fugazes, fogos-fátuos da criatividade, fios que mais enredam que conduzem. Converter, reduzir, para traduzir. Converter o literário em texto submisso à teorização lingüística — amestrá-lo para traduzi-lo. Reduzir o intraduzível a elementos analisáveis — menores parcelas que fazem sentido — para tornar transferível mesmo o mais idiossincrático.
Converter o texto em trechos manipuláveis — moldáveis a uma interpretação mais pragmática, digamos. Reduzir, como se fazia nos tempos da colônia — subjugar para converter a outras crenças, mais úteis aos propósitos do tradutor ou dos leitores.
Reduzir, como novo sinônimo geral de traduzir. Todo o significado histórico, toda a carga de preconceitos numa única palavra: reduzir. Verter o rio caudaloso do original na vasilha miúda e rasa da tradução. Conversões? Verter em vasos uniformizados todo o sangue vivo e quente que veio da veia inventiva do autor. Astro o autor. Mimo, calado e tolhido, o tradutor.
Converter para traduzir, reduzindo o texto cheio de luzes e ricos matizes às meias-sombras pasteurizadas da tradução. Há como fugir desse beco sem saída? Entregar-se à fidelidade mais estreita certamente não resolverá. Recorrer à violência textual mais explícita — dissolução — poderá destruir texto e tradutor. Mortos num abraço desbragado.
Converter o original literário em fragmentos manejáveis. Não se trata de pinçar partes ao léu — e fazer quer a tradução, quer sua crítica, com base em parcelas mínimas do todo. É geralmente o que se faz na crítica da tradução — pinçar passagens a esmo, geralmente em busca dos defeitos mais gritantes, e exercer, com a convicção da autoridade mais cega, o supremo papel de juiz.
Converter, desta feita, para melhor traduzir. Reduzir, sim, mas com a mira fincada na arte. Ampliar o sentido e o perfume de arte que emana do original. Converter o ilegível e o intraduzível — por meio dessa arte, da sensibilidade própria do bom tradutor — em trechos que farão vibrar o segundo leitor como, antes, o primeiro.
Converter, mas não de maneira mecânica — não como os melhores motores de tradução —, mas da maneira mais artesanal: conversão como fruto da releitura e da reflexão. Busca de caminhos nunca antes trilhados — muros jamais franqueados. Reside aí o mistério da tradução. Mistério, aliás, sempre renovado, a cada geração, a cada tradutor, a cada novo texto.
Conversões, tantas, dentro de um mesmo processo tradutório. Perdas e ganhos, mas com alma. Texto com alma, como o próprio original. Verter ali um pouco do sangue do tradutor. Mesclá-lo com o sangue do autor — fluidos miscíveis insuflando arte em palavras, meras palavras. Converter o texto não só de língua a língua, mas, linha a linha, padecer o processo criativo. Quanto tempo se perde nisso, nesses tempos em que o trabalho do tradutor vale a conta dos toques nas teclas? Ruído rápido que se converte em texto, som de cobre que roça cobre.
Difícil também converter o estilo em estilo novo — talento do autor transmudado em inspiração. Estilo novo ou copiado? Emular, analiticamente, peça por peça, dom por dom? Com método ou com alma? Seja como for. Converter o talento. Transfundi-lo, em lentas doses administráveis, com carinho e perícia, para o tecido delicado do texto. Toda essa trama, tecida com esmero lá atrás, trançada agora em nova teia: rede armada para capturar novos leitores.