Continuemos a fotografar o filme

O original tem, além de sua quase irritante presunção de originalidade, uma dinâmica que nenhuma tradução terá
01/04/2011

O original tem, além de sua quase irritante presunção de originalidade, uma dinâmica que nenhuma tradução terá — nem mesmo na ausência, para sempre, daquele texto que o gerou. Dinâmica de continuidade, de sempre frescor — algo que a tradução perde com poucos anos de serviço.

É assim como a diferença entre o estático da fotografia e o movimento do filme. Traduzir é congelar o original num ponto qualquer do tempo e do espaço cultural. Solidificar articulações entre elementos lingüísticos que deveriam permanecer flexíveis, paralisar o movimento irrequieto e fugidio dos sentidos das palavras. Uma vez traduzido, um termo como que perde muitas das possibilidades que permanecem continuamente latentes no original.

É o preço a pagar pela compreensão — para compreender, traduzir, é preciso reduzir. A tradução é um tipo de redução, do original — algo lá no alto — para uma (dentre muitas possíveis) tradução que limita o alcance do texto no intuito de dar-lhe sentido. Mais ou menos como a ciência faz com a realidade — reduzi-la a um mínimo compreensível, mesmo que incompleto e imperfeito.

Incompletitude e imperfeição são palavras que combinam tão perfeitamente com tradução!

Na tradução, minimiza-se o texto a alguns elementos selecionados. De uma gama ampla de significados — que o autor pode ou não ter pressentido ou desejado — escolhe-se apenas um.

É o preço a pagar pela comunicação, que exige a transmissão da mensagem mesmo à custa da arte que viceja na multiplicidade indomável do original. Deixar ali o texto, como obra quase só visual, ou reduzi-lo para lê-lo efetivamente?

Paga-se pouco pela tradução — paga-se mais por aumentar que reduzir. O original, de alguma maneira, amplia o acervo artístico da humanidade, enquanto a tradução reproduz e, ao fazê-lo, reduz.

Mais vale o filme que a foto, que esta reduz, enquanto aquele estende. Estende ao leitor um menu repleto de opções — e o leitor, ao contrário do tradutor, não precisa necessariamente fixar-se em apenas uma. Pode deixar-se levar por várias, saboreando até o fim toda a arte que há nas sugestões múltiplas.

O tradutor se obriga, o mais das vezes, a restringir-se — reduzir — a escolhas estáticas, que serão destroçadas dali a alguns anos ou décadas (sendo otimista) ou já detonadas na primeira crítica.

As escolhas estáticas disparam, por sua vez, outra pletora de possibilidades — mas então já não são as mesmas do original, e por isso não têm o mesmo valor, mesmo que melhores do ponto de vista artístico.

A contemplação paralisante da foto não tem o charme buliçoso do filme e todo o seu movimento, que distrai, fascina e anestesia. Toda tradução, estática como é, está condenada à obsolescência. O original, em seu movimento, dribla o tempo por colocar-se ao seu lado. Evolui com ele, passo a passo, e mesmo como mero enigma — ilegível — ainda deslumbra.

Resignar-se? Deixar-se vencer pelo assombro da tarefa que assoma impossível? Há talvez uma saída, que atravessa o campo minado — tabu — da infidelidade. Cruzar essa porta é perigoso, inda mais se adrede. Violentar o texto original e, distorcendo sentidos, buscar uma nova originalidade? Longe de mim defender algo assim. Continuemos a fotografar o filme.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho