Conseqüências da onipotência do tradutor

A onipotência do tradutor diante do original é algo que assusta. Impõe ao tradutor dose extra de estresse
01/08/2007

A onipotência do tradutor diante do original é algo que assusta. Impõe ao tradutor dose extra de estresse. Aumenta a carga de responsabilidade. Mas pode funcionar como convite à mais desabrida irresponsabilidade. Em outros tempos essa onipotência era sentida de forma mais aguda. Havia poucos meios de comparação, de verificação. O controle hoje é bem maior, e tende a aumentar. Restringe-se a área de manobra. Mas nada diminui essa onipotência. O texto original é objeto indefeso. Se vilipendiado, não reage. Sujeita-se a toda espécie de recombinações. É “um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”, na expressão de Roland Barthes. O tradutor, onipotente diante do texto, acredita na sua própria interpretação e faz dela, embora não a única possível, aquela que se vai difundir. Cada tradução, na interminável evolução dos textos, é provisoriamente a melhor expressão do original na nova língua (ou no novo tempo). Desde que feita com responsabilidade, ou seja, produzida com base nos consensos culturais vigentes. No dizer do estudioso belga André Lefevere, as traduções não são fabricadas num vácuo. “Os tradutores trabalham numa dada cultura, num dado tempo. A forma como se compreendem a si mesmos e sua cultura é um dos fatores que podem influenciar o modo como traduzem.” Nada garante, contudo, uma boa tradução. Não há garantias estáveis. Não há uma base universalmente aceita. O próprio conceito de literatura não tem garantias universalmente aceitas. Mas o mero parecer, na perspectiva do instantâneo, já se considera suficientemente seguro. Na tradução, como no original, muito resta a ser sugerido, conjecturado. Não bastasse a onipotência do tradutor, para aumentar-lhe o fluxo de suor, ainda há a necessidade de preencher (ou manter) lacunas. Vazios que, muitas vezes, não se revelam deliberados ou não. O tradutor é soberano; a tradução, pedra de toque do texto. Define-lhe significados originalmente ambíguos. Apara-lhe arestas incômodas. Desbasta-lhe excessos inúteis. Dá nova cara — rejuvenescida, às vezes — ao original mais vetusto. A tradução também testa o texto. Testa, talvez, em dois sentidos: prova e sonda. Diria o teórico Joseph Graham que a tradução é muitas vezes considerada como espécie de teste de significado, como teste que estabeleça a diferença entre significados distintos (e, supõe-se, igualmente possíveis). O resultado, claro, será sempre disputável. A tradução é sempre experimental, um ensaio que se deveria deixar para terminar no futuro. Mas publicar é preciso, e rápido. As traduções, quase sempre, são feitas em tempo menor que o desejável. O afobamento gera imprecisões, decisões prematuras, ou, pior, temerárias. Um pouco mais pensado, um pouco mais pesquisado, o texto poderá ser sempre melhor. Não se pretende eliminar o mérito da espontaneidade (que supera, às vezes, litros de suor). O ideal seria conjugar as melhores qualidades: conhecimento, talento, criatividade e trabalho duro — incluindo aqui tempo suficiente para pesquisa. Parece inalcançável conjunção, mas não é. Rara, talvez. Fechemos com Octavio Paz, que muito entendeu do metiê: “Traduzir (supõe-se, traduzir bem) é muito difícil — não menos difícil do que escrever os ditos textos originais —, mas não é impossível”.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho