Como um fremir na superfície tensa do texto

Esse áspero fremir, frêmito como do vento contra o texto, do texto contra o texto, a roçar, chispeando estrídulos
31/08/2015

Esse áspero fremir, frêmito como do vento contra o texto, do texto contra o texto, a roçar, chispeando estrídulos. Rascando as rugosidades, polindo, como para encontrar a exata medida e a exata extensão de cada sentido. Trabalho de mester que domina seu ofício, acrisolando a palavra à mais plena perfeição.

O prazer de trabalhar o texto, com a vantagem — vantagem de tradutor — de tê-lo todo diante de si, já completo, à espera apenas de sua mais perfeita expressão. Da mais perfeita tradução.

Durezas e deleites dessa arte-ofício, que une cópia e criação, mecânica e invenção. O prazer de apurar essa longa fila de frases ermas, transformá-las em corpo animado de harmonias. O conjunto que, se não toca imediatamente as fibras mais sensíveis do que se julga literário, manifesta ao leitor o empenho que se deve aplicar na trilha da lida literatura.

Na superfície do texto, sentidos morrem devagar, lenta agonia, clamando em estertores um último esforço — forâneo, como tem que ser — de interpretação. Naufragam, às vezes sem míseras iletradas testemunhas. Irrecuperáveis destroços dispersos: inevitável esfacelamento do texto em trechos infensos à interpretação unificadora.

A força criadora da tradução faz seu sujeito mergulhar, enredar-se, na malha do texto. Do meio dos escolhos, ao final da faina, na rede mais fina ou grossa que aplicar, a fineza do resultado. O que fizer emergir — em termos da qualidade de significados, contrastados com o original e todas as suas possibilidades — fará o primor ou a sombra de sua reputação.

A tradução, de certa forma, põe à prova a qualidade do texto. Seu mérito, não raro, reside no prêmio de traduzir-se. Também põe à prova — e isso é lá outra coisa — a permeabilidade do texto: sua capacidade de deixar-se insuflar de outros ares; sua faculdade de poder amoldar-se a outros ambientes linguísticos.

Na fronteira entre os textos — entre as diferentes encarnações de um mesmo texto, seu(s) original(is), suas traduções — é que se pode medir seu pulso. Tirar sua temperatura, avaliar sua vivacidade e as possibilidades de sua persistência no tempo, na vagarosa sucessão das línguas.

O sujeito-tradutor — ele também — tem lá sua forte, decisiva influência na qualidade final do texto. Cabe ao tradutor, percuciente, mapear a estrutura textual na qual operam suas redes de significação. Cabe ao tradutor cultivar a habilidade de transitar pelos circuitos de significação do texto — seus meandros mais íntimos e mais caracteristicamente literários —, para inventivamente reproduzi-lo da maneira mais competente. Gravar no texto traduzido o selo de sua escrita, de seu estilo.

Caberia também ao tradutor registrar os desvios — tantos desvios — que toma no curso de sua leitura-tradução. Inserir-se nas deformações do texto. Registrar esses desvios tão prenhes de significado, justamente por serem sugeridos, de alguma forma, pelo próprio gênio do original.

Será que ainda lhe caberia ligar sentidos-palavras que amarram o original à tradução, o texto lido ao efetivamente percebido ou interpretado? Ou, talvez em gestos com pitadas adicionais de ousadia, esvaziar o original de seus sentidos, atribuindo à escritura novas opções de representação. Infidelidades? Ou a mais estrita fidelidade levada a suas últimas imprevisíveis consequências?

Seja como for, será sempre essa interação intensa que permite o surgimento de alguma tradução. O olhar do tradutor, sua leitura, como luz que se projeta — de início, alumia — e se perde engolida pelas trevas. Do outro lado, quem o lerá?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho