Como surpreender os movimentos secretos do autor

O exercício da tradução deveria supor a reconstrução do pensamento do autor
01/06/2011

O exercício da tradução deveria supor a reconstrução do pensamento do autor. Percorrer os passos — invadir os meandros mentais — do escritor, por meio de um texto que já não os contém, mas que os pode indicar. É, talvez, nada mais que uma vã esperança. Quem sabe uma ousadia, paradoxalmente resultante da proverbial humildade do bom tradutor: ter, como recompensa pela submissão, acesso à inteligência do autor.

Humilde, o tradutor não questiona o original, mas o tem por verbo sagrado. Profissional, palmilha, letra a letra, vírgula a vírgula; volta, relê, até achar o sentido que escaparia ao leitor mais atento.

Maurice Rat, em prefácio à tradução para o francês de Elogio da loucura, constrói imagem marcante do ofício do tradutor: aquele que entra na intimidade do autor; aquele que surpreende, com os procedimentos de seu estilo, os movimentos secretos de seu pensamento (será uma tradução errada?).

Traduzir é mesmo oportunidade única: momento singular de intimidade intelectual, que permite não apenas estudar o texto e o autor, mas penetrar os volteios mais recônditos de seu pensamento. Movimentos secretos, que se revelam e se ocultam no mesmo texto. Será mesmo possível? Daria o texto acesso ao raciocínio daquele que o montou?

Se é que é possível fazê-lo, a tradução parece fornecer o meio ideal, pelo esforço de compreensão e análise que exige. Se não acesso, pelo menos alguma indicação dará. Digo, a tradução feita mais que com esmero: com obstinação. Mas resta sempre um talvez, em tradução.

Será que o autor gostaria, assim, de ser surpreendido — ver revelado o mecanismo que colocou em movimento para armar o quebra-cabeça do texto, que ele acha — com toda a razão do mundo — único? Não é justamente tudo o que o escritor sempre quis reter — manter como dele só? Os movimentos secretos de seu pensamento, que são também a chave de seu texto e a representação da singularidade de seu estilo.

O tradutor — humilde na aparência — surge como usurpador. Ladrão de estilos. Não apenas copia o texto, mas, indiscreto, devassa trilhas que se queriam ver apagadas para sempre. Rastros quase extintos ganham vida nova — ressaltam do chão sempre úmido abaixo das palavras. As bordas das pegadas exibindo arestas e asperezas — ainda tão vivas — dos pés que as talharam.

O autor é cioso dos meandros de seu pensamento — dos secretos movimentos mentais, caprichos de neurônios, que podem fazer sua fama e a persistência de sua memória. A originalidade supõe outros movimentos secretos: fechar a porta e jogar fora a chave, apagar os rastos, raspar os restos e mergulhá-los no abismo — até que soçobrem todos os vestígios.

Mergulhador, escafandrista, o tradutor desce às profundezas das águas e dos tempos em busca desses restos que — ao lhe permitirem compreender os movimentos secretos do pensamento do autor — restituem a textura e o sabor do texto original ao leitor de outras épocas e culturas.

Arqueólogo da linguagem, insufla vida em palavras pálidas, desmaiadas num hermetismo resultante de distâncias insuperáveis. Como superar mesmo a distância curta de cem anos atrás, com a certeza de refazer exatamente o mesmo caminho que trilhou, originalmente, o autor primeiro?

Dá algum ceticismo, certo. Duvido, com a força inteira da fé, dessa possibilidade de retroação. Duvido da conseqüência de um exercício que, apostando no improvável, na recuperação de momentos mais que fugidios, descura o que fica à frente. O texto, qualquer texto, parece ter apenas um sentido: do presente ao futuro.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho