Como captar um texto que flutua sobre o papel

Texto transido, o original treme ante a tradução. Morte ou sobrevivência?
01/08/2013

Texto transido, o original treme ante a tradução. Morte ou sobrevivência? Persistência na dor eterna da perda de todo sentido? A tradução não canibaliza o original para transformá-lo em texto novo? Como não considerar, então, na tradução, a morte do original, assim como a morte do autor significa o advento do tradutor?

Ou morte talvez não seja a palavra certa. Certo seria dizer que morto já estava o texto inerte no papel: após a escritura e antes da leitura. Texto em potência, que pede a tradução que lhe confira sentido. Texto em descanso estéril, esperando a madrugada que lhe aplique o orvalho, que lhe devolva o frescor.

No papel, o texto morre pouco a pouco no esquecimento gradual da língua. Via tradução — leitura, interpretação — a palavra ganha vida e vive emoções diferentes daquelas que a conceberam. Há como recuperar o frescor de outrora ou mesmo o que se pensa recuperar já insinua a sombra do novo?

Há um texto que flutua — sobrenada — acima da palavra impressa no papel ou estampada na tela. Alvo semovente. Há que capturá-lo. A tradução opera essa captura, capta o significado com antenas sensíveis, com o sentido centrado entre a preservação e a projeção. Um pé no futuro, outro no passado. Olho no leitor, olho no autor.

Olho a sombra toda do original que se alonga, como em pôr-do-sol, levando longe sentidos que se alteram, se mesclam, se dissolvem e se resolvem em texto novo. Olho do tradutor, atento, mede a densidade — suas falhas, frestas, rugosidades — dessa sombra à medida que se afasta, se estende, do opaco ponto de partida que a projeta. Por trás está a luz, que projeta luz, não a sombra. A sombra é só a falta. A tradução é a luz.

Há como que um deslocamento do texto em relação à escrita. Não mais se encaixam como antes, como no instante primordial da concepção — não sei bem se ainda na idéia ou já no bico da pena, ou ainda depois, no traço vacilante da tinta, que depois se fixa seca. Inflexível. Quebradiça. Quebradiço é o texto que se supõe eterno. A perfeita sobreposição original não dura mais que mero instante.

Antes, a inspiração jorrava em jatos. Jatos de tinta no papel. A verdadeira intenção do autor, recolhida em superfície tão frágil, tão mortal. Contido o ímpeto outrora irrefreável. Como preservar esse viço do jato, a tinta ainda fresca, jogando sobre o papel como barco em mar ondulado? Vem o vento, sopra a seca, cristaliza. Tinta fria e rígida, áspera, como pode, com todas as suas arestas, provocar efeitos tão suaves?

Depois, sobre o texto flutua o texto, sob a sombra se aconchega a possibilidade de fazer sentido. Não sabe bem qual direção escolher, o tradutor. Represar no inchaço da vela todo o assomo desse jorro? Deixar fluir solto, o texto foge, dessangrado, dessignificado.

Motor de culturas, a tradução puxa como locomotiva. Desloca o texto, que flutua. O leva a outras dimensões — mais largo, mais limpo, mais claro. Situa a língua em outra geografia, alheia à terra que a gerou. E se cada língua abriga mesmo aquela singular visão de mundo que impossibilita, na prática, a tradução? Locomotiva cega, segue distraída o rumo do progresso. E não há caminho de volta. Nem mesmo via tradução.

Texto transido. A tradução treme diante do novo leitor. Teme outra tradução que a desfigure? Flutua já novo texto sobre a superfície enrugada, a tinta ressecada quase descolando, atraída por outras inspirações. Ímã da dispersão dos sentidos. Dissolução ou excessos da criação?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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