Como absorver todo o prestígio do original

Nunca entregar o texto ao desalinho, deixando-o solto ao relento, resvalando como que para dentro, de volta ao original
01/12/2014

Nunca entregar o texto ao desalinho, deixando-o solto ao relento, resvalando como que para dentro, de volta ao original. Busca sempre o ganho. A tese do ganho que traz cada tradução em relação ao texto primeiro. A oportunidade de dar uma contribuição, acrescentar relevo em uma lacuna — aquela brecha que o autor parece haver deixado para deleite do leitor/tradutor, mas também como espaço de criação.

Não se trata de investir em espécie de decoração textual, que não necessariamente deve interessar ao tradutor. O ganho vem do realce que se pode dar aos elementos mais nitidamente literários do tecido original. Inserir entendimento que já se insinuava, mas que não se concretizou — talvez porque sequer fosse possível na época do autor.

Não se trata tampouco de mera atualização, embora esse seja elemento importante e até incontornável no processo tradutório — sob pena de incompreensão. Mas é preciso, claro, ir muito além. Buscar a brasa ali dormida, agora já fusca, mas que espera apenas atiçamento para renascer em flama fulgurante.

Talvez seja necessário remover algo, remexer o texto, arejá-lo. Tirar poeira, remover a camada que cobre o tecido e encobre o sentido. Deixar que a água da tradução cubra todo o texto cansado — o original. Mergulhá-lo na tradução. Lavá-lo. Renová-lo.

Juntar os sentidos do original e da tradução. Fazê-los ressoar em uníssono? Um só sentido, um só texto? A utopia rediviva de toda tradução, de transmissão impoluta da mensagem original.

Fazer convergir significados — aquilo que a leitura nos traz, aquilo que a pesquisa esclarece. A mescla de intuição — e das inevitáveis sugestões estéticas do texto literário, o fazer sonhar – e investigação. Não sucumbir à erudição (especialmente quando à margem da realidade literária, que requer sempre espaço para o sentimento), não se espraiando demais em notas, glosas, paráfrases, devaneios, desvarios — tudo o que o leitor pode dispensar, sem remorso.

Traduzir não só cerebralmente, mas deixar ali — em suor e sangue mesclados à tinta — palavras que encerram vivências. E que, por isso, são tão prenhes de significado.

Esquadrinhar o texto em busca de problemas, efeitos, novas soluções. Abrir espaço para o inexato, como elemento inseminador. Semear, às vezes, o germe da ingresia — como a força que desce do céu para conspurcar línguas e sentidos em Babel. Atirar sentidos à praia, à espera do náufrago que não se sabe se irá chegar.

Não permitir a depressão dos sentidos. Não reduzir, mas fomentar o ganho. Avivar o texto, com palavras de tons provocadores, com frases de temperamento agreste, com parágrafos de estrutura transgressora. “Tricolon” vencedor?

Açular o leitor, estimulando a prolongação da leitura. Reabrasar o tição. Reescrever o texto desenhado em angústia — a mesma do original, somada àquela produzida pela fricção da tradução.

Trabalhar nas gretas deixadas no texto primeiro — essas frinchas que, bem usadas, trazem sentido novo ao texto. Ser tradutor sem ser hilota.

Ir ao enterro do original e seu autor — funeral das horas passadas diante da tela, da máquina do papel. O texto que não deixa saudade.

O objetivo final? Absorver, na tradução, todo o prestígio do texto de partida. Não só toda a sua qualidade, mas seu prestígio como tal, original.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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