Com Helena Kolody

Helena Kolody foi uma poeta-tradutora; viveu no limiar de dois mundos, duas línguas, duas culturas
A poeta paranaense Helena Kolody
01/08/2024

Relendo o Roteiro literário Helena Kolody, escrito por Luísa Cristina dos Santos Fontes e publicado pela Biblioteca Pública do Paraná, em 2018, me chamaram a atenção algumas alusões aos processos de tradução, no contexto da produção de poesia.

Helena Kolody foi uma poeta-tradutora. Viveu no limiar de dois mundos, duas línguas, duas culturas. Brasileira filha de ucranianos, foi uma criança bilíngue. E carregou a marca e a necessidade da tradução ao longo de toda a sua vida. Santos Fontes resumiu essa característica com uma citação de Kolody: “Vibram-me dentro d’alma almas que não são minhas. Atrás de mim, vozeia e tumultua, anseia e chora, e ri, arqueja e estua a imensa multidão dos ancestrais”.

Naturalmente, o conceito amplo de tradução permeou a obra e a vida da poeta paranaense. Orientou sua escritura a necessidade de encontrar uma expressão possível de sua constituição híbrida.

Santos Fontes identificou na poeta, pairando entre dois mundos, a pulsão e a coragem por explorar “espaços desconhecidos”. Contido nesse processo de sondagem estava o reconhecimento do outro idioma — associado ao paralelo domínio da linguagem poética —, com o desenvolvimento de uma remodelada capacidade de conceituação: “mergulhar em uma nova língua significa ter que nomear novamente todas as coisas”.

Esse processo de renomeação — que é também uma tradução — implica a descoberta de uma distinta visão de mundo possibilitada pelo outro idioma. A nova perspectiva permite enxergar a realidade de forma diferente — ou, de outro ângulo, visualizar coisas diferentes e conceber novos sentidos. A autora do Roteiro sintetiza a ideia: “Abarcar o mundo com uma outra memória. Criar um outro universo”.

A transplantação da poeta se associa à necessidade da tradução. O recurso ao passado depende da apreensão da memória, elemento altamente instável e claramente maleável. A dificuldade é evidente, e a tradução, uma vez mais, se impõe como solução, ainda que imperfeita. Santos Fontes comenta esse cenário complexo, apontando que o leitor/tradutor tem que enfrentar sua incapacidade “de restabelecer com fidelidade e certeza os nexos de uma língua e de um tempo pretérito”.

Essas reflexões questionam os vínculos entre memória e passado, ou, por outra lente, nos levam a contestar a possibilidade de refazer o elo frágil entre a memória e a própria realidade. Pois esse é outro processo de tradução — processo, aliás, fundamental para a produção de texto e, de modo mais geral, para a comunicação humana. A reconstrução da realidade pretérita a partir da memória envolve sempre lacunas e incertezas, que são compensadas, na tradução, por certo grau de inventividade e imaginação.

Helena Kolody resume o problema, transpondo-o para a produção de poesia, em reflexão inscrita em Um escritor na Biblioteca, publicado pela Biblioteca Pública do Paraná em 1986: “Antigamente, o que eu escrevia era reflexo da realidade. Depois, aprendi que o poema cria sua própria realidade, diferente da realidade prática, embora esta seja a base do poema”.

A criação de uma nova realidade, por força da composição poética e da imaginação, acaba por se impor como necessidade. E essa mudança de perspectiva — de reflexo para criação da realidade — corresponde, também, ao processo de amadurecimento da autora.

Para Helena Kolody, a própria leitura — que não deixa de ser uma espécie de tradução — também implica criação/imaginação; mas do poeta — leitor/criador privilegiado da realidade —, do poeta, antenas atentas, se exige algo mais: uma “imaginação muito viva”. Daí toda a dificuldade da tradução da poesia.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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