Certos pontos de contato entre história e tradução

Evaldo Cabral de Mello, em texto recente, traçou um paralelo interessante entre o livro de história e a tradução
Evaldo Cabral de Mello
01/12/2003

Evaldo Cabral de Mello, em texto recente, traçou um paralelo interessante entre o livro de história e a tradução. A narração da história surge como tradução, por destinar-se a leitor situado em outras épocas. Surge como combinação, em proporções variáveis, de passado e presente. A metáfora, quando encarada do ponto de vista do tradutor, permite, puxando e esticando um pouco o fio do raciocínio, uma tentativa de reflexão.

O tradutor, como o historiador, não consegue se desvencilhar de fatores ideológicos que conformam seu pensamento. O tradutor, como o historiador, não pode decolar de seu tempo e seu lugar. Preso ao chão, só a imaginação e a criatividade podem alçar vôo. Vôo controlado, com quantidades bem dosadas de acrobacia, e um cálculo ponderado do efeito e do risco. O tradutor, como o historiador, bebe em originais (as “fontes”) que serão lidos e interpretados segundo parâmetros fixados pelo ambiente que o envolve. Se o livro de história é sempre uma tradução, qualquer tradução carrega em si o momento histórico em que foi produzida. A tradução, como qualquer processo histórico, é um ato de transformação.

O grau de liberdade, mesmo se se leva em conta a transgressão deliberada — do tradutor como do historiador —, é sempre finito, e mais que finito, contido. Entre as balizas dadas, porém, é possível navegar ainda com muita arte. A tradução, como a história, quando em boas mãos e saídas de penas competentes, se impregna de arte. Um livro de história pode muito bem ser uma obra de arte e superar o próprio impacto dos fatos narrados — com realismo e objetividade —, assim como uma tradução pode alçar-se acima do texto que a fundamentou. Mera secura não garante boa história, nem boa tradução.

O tradutor, como o historiador, produz cercado de si mesmo e de suas circunstâncias. Mas não só isso. Produz mergulhado também na concretude e nas circunstâncias de suas fontes e originais. A fonte do historiador — documentos, fragmentos de informações etc. — encontra boa metáfora no original do tradutor. Ou nos originais, que tradução feita em cima de um só original é trabalho com vício de origem. Pesquisar é preciso, na história ou na tradução.

De outro ângulo, a tradução talvez possa ser vista como a história, prolongada no presente, de um texto original. Há um elemento a mais aí, claro, pois além do deslocamento temporal — e a tradução, óbvio, estará sempre no futuro em relação ao original — há o deslocamento de um código a outro. O que, aliás, freqüentemente ocorre também na historiografia — a história do Brasil escrita em francês, por exemplo, com base em fontes em português.

A dificuldade de apreensão de um texto e sua remontagem em outro tempo e espaço é notória, pela quantidade de variáveis em jogo. Daí a complexidade da tradução e a quase impossibilidade de rastreá-la, retrospectivamente, e mecanizá-la, prospectivamente. Na história, cuja fonte é sempre, em última instância, um texto, a dificuldade não é menor.

Não há uma forma “correta” de produzir material historiográfico, como também não há um guia acabado, ou mesmo minimamente eficiente, de tradução. Narrar a história e traduzir será sempre, mesmo que a máquina aprenda a pensar, uma aventura de resultado incerto. Traduzir uma parte na outra parte não precisa, claro, ser questão de vida e morte. Mas algum risco inevitavelmente se correrá.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho