Certa fidelidade ao sentido profundo

Não sei se seria certo dizer que traduzir é buscar fidelidade ao sentido profundo do texto
01/05/2013

Não sei se seria certo dizer que traduzir é buscar fidelidade ao sentido profundo do texto. Sendo o sentido profundo aquele que projetam, lá do fundo do texto, as palavras — signos instantâneos e provisórios — que aparecem na superfície (aquilo que se lê em voz alta).

Fidelidade não é exatamente conceito fácil de definir em tradução. Mais polêmica se gera, tanto mais se fala no assunto. Valerá a pena tentar outra vez?

Mais fácil é definir a superfície — o texto que se lê em voz alta e que se pode entender ou não, mas que se pode ler, ouvir e, mecanicamente, copiar. Trata-se de capa delgada que funciona como espécie de invólucro de significados. Embrulho de presente, talvez nada mais. Enfeites, ornamentação. Aquilo que encanta ouvidos e olhos, mas que distrai e ilude a mente.

Traduzir implica passo adicional e muito mais complexo — captar algum sentido que possa ser reelaborado em outro meio — outra língua, outro tempo. Implica ultrapassar a superfície e construir, com aquela massa informe do texto apenas lido, algo inteligível e coerente. O que realmente interessa está mais abaixo, em camadas que se devem penetrar até onde se possa (mesmo que não se chegue ao núcleo, o qual, aliás, não poderia senão negar sentido ao tradutor).

Palavras, sinais de pontuação, posicionamento no texto, são signos mais ou menos vazios que não podem fazer muito mais que indicar alguma direção. Algum sentido, talvez. Conjuntos de palavras — frases, parágrafos, etc. — são indicadores mais seguros, embora ainda imprecisos.

A operação que realmente faz sentido — a tradução — é esse mergulhar além da membrana fina do texto, após reunir, na superfície, elementos que sirvam de âncora e sonar lá embaixo.

Na tradução, é preciso desapego para descartar a superfície — as palavras que se lêem no original. Sacrificar as palavras originais para construir, na tradução, texto que seja fiel ao sentido profundo. Modificar a superfície textual — mesmo que seja preciso deformá-la — para produzir nova escritura, inteligível e esteticamente aceitável. Talvez não haja crítica que o compreenda, o tradutor.

O conceito de sentido profundo — e outros correlatos, como estrutura profunda ou núcleo do significado — não é nada pacífico. Disputável sempre, sujeito a todo tipo de contestação — sobre sua própria existência ou relevância para a tradução. Metáfora, talvez não muito mais que isso. Palavras na superfície, significado profundo. Transposições que buscam explicar o quase inexplicável.

Desapego para livrar-se de conceitos inúteis — superfície e fundo — que, na prática da tradução, podem ter pouca utilidade, mas que talvez soem bonitos em textos supostamente teóricos. Ensaios sobre teoria possível mas improvável.

Para traduzir é preciso desapego para livrar-se da beleza inefável do original. Como trasladá-la ao meu próprio texto? Inútil a mera imitação. Difícil a recriação — recriar é como criar, trabalho de autor. Inútil burilar conceitos — fundo, núcleo, superfície — enquanto o texto te desafia, imponente, do alto de seu indescritível fascínio. Original, acima de tudo. Coisa que nunca serás, tradução, como tu, tradutor, nunca serás autor.

Romper a superfície plástica — difícil de furar, de tão flexível — desse texto labiríntico? Profundezas, para que buscá-las, se o que me pagam se conta em palavras, caracteres, laudas? Trabalhar na membrana, redesenhá-la. Afastar, no máximo, essa espuma suave que recobre o texto — traduzir como quem substitui, mecanicamente.

O sentido — seja como for, rasteiro ou profundo — se nega ao tradutor. Há sempre que arrancá-lo.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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