O castelo, de Franz Kafka, é uma obra inacabada. Toda tradução também é uma obra inacabada, interminável, sempre sujeita a revisões. Mas o próprio original também pode ser objeto de revisões pelo autor, em sucessivas edições. Textos são sempre fluidos e predispostos a edições.
No caso de O castelo, o autor não pôde revisar sua obra. Morreu antes de concluí-la — e, ainda, deixou por escrito expressa determinação de que os manuscritos fossem destruídos. As publicações póstumas acabaram gerando textos com variações significativas entre si, segundo as diferentes estratégias de edição — que podem ou não incluir, por exemplo, passagens riscadas pelo autor.
A tradução de um texto inacabado e publicado em edições que trazem diferenças sensíveis entre si tende a gerar um problema prévio: que original(is) escolher?
Modesto Carone, cuja tradução de O castelo foi publicada pela Companhia das Letras, em 2008, nos indica em seu posfácio que usou como base a edição crítica alemã de 1982. Esta edição, considerada a melhor por Carone, é também talvez a mais polêmica, inclusive por ter incorporado passagens riscadas e por ter “decifrado” várias outras. Essa decifração, a propósito, não deixaria de ser um outro tipo de tradução incorporada ao próprio original.
Modesto Carone nos indica, sobre a tradução, que procurou, “na medida do possível […] seguir o original de perto, à procura de equivalências”. Assinala que essa busca envolveu tanto “a frase direta, que põe a narrativa em andamento” como “o discurso de persuasão dos personagens, principalmente dos burocratas do poder”.
Os diálogos entre as personagens, como sugere o tradutor, têm grande importância e destaque no texto, ao ditar o tom protocolar e burocrático que impregna o romance e que ajuda a adensar a bruma de totalitarismo que, como no caso de O processo, envolve a obra. A estratégia de Carone, portanto, é fundamental para preservar o ambiente carregado que projeta o original.
De fato, o tradutor, em seu posfácio, confere particular relevo à forma como procurou trasladar os diálogos, os quais, conforme Carone, configuram “arabesco complicado […] ocupando com frequência mais de uma página”. Para ajudar o leitor a vencer os meandros de um texto complexo — estratégia potencialmente controversa —, o tradutor adaptou a pontuação, a fim de melhor demarcar as pausas e a alternância de interlocutores.
Outro ponto ressaltado por Carone no posfácio foi a manutenção, no texto traduzido, do ponto de vista adotado pelo autor, que é o do protagonista K., embora “a narrativa siga a terceira pessoa”. Como consequência desse critério do autor, replicado pelo tradutor, o texto publicado no Brasil apresentaria, conforme Carone, elemento de estranhamento provocado pelo fato de “a frase em português [se deixar] invadir de quando em quando pelo original”. Ressalva o tradutor, contudo, que não haveria adulteração de sentido “do que é dito ou contado — seja a proliferação dos obstáculos, as conversas ou monólogos intermináveis, ou o humor capcioso que rege as supostas possibilidades de sucesso de K. no seu rol de fracassos”.
A propósito, a inescapável questão da tradução — tradução interna, neste caso — também se insinua em diálogo sobre as cartas que chegam das autoridades do Castelo, no qual os personagens debatem como interpretá-las: “…julgar corretamente as cartas, é impossível; elas mudam continuamente de valor, as reflexões a que dão ensejo são infindáveis e o ponto em que se deve parar é apenas definido pelo acaso…”. Como interpretar as cartas, como traduzi-las para o destinatário, qual o papel do mensageiro nessa tradução? São questões básicas que qualquer tradutor suscitaria em seu ofício.