Naquele tempo, acreditava-se não somente em Deus, mas também no poder da tradução. A Palavra não cabia mais numa só língua. Era preciso conquistar, sem perder a pureza. Miscigenar, misturar-se aos outros povos, misturar as muitas línguas, sem transigir na conduta nem na Palavra. Acreditava-se que Deus, e somente ele, podia instilar poder e sabedoria nos tradutores de sua palavra.
Uma religião se faz com bons tradutores. A pureza da Palavra não pode oscilar na fronteira entre as línguas. Tem que se manter imácula, até onde alcança o crivo da exegese. Esdras não podia hesitar na interpretação, que tinha de ser exata. Não vacilar na fé, não vacilar na tradução: vazar a Palavra em palavras precisas.
Que mais preciso pode haver que a perfeita coincidência entre setenta traduções independentes de um mesmo e longo texto? Eis a própria essência da religião: o alento divino inspirando, em seu isolamento, cada um dos sábios tradutores. O resultado não é apenas a disseminação da Palavra, mas também a preservação do texto, que, traduzido, reproduz-se, permanecendo igual a si mesmo, mesmo em roupagem distinta.
Só pode ser coisa de deuses e reis. A versão do rei James (ou, traduzindo, Tiago) também não teria sido fruto de milagre parecido? Cinqüenta tradutores, cada qual trabalhando isoladamente, não teriam aparecido com exatamente o mesmo texto inglês da Bíblia, depois de longo e penoso trabalho?
Uma religião se faz com homens, livros e traduções. De que adianta ser inspirado apenas o texto original, se sua tradução também não o for?
Quem será capaz de ler o original daí a tanto tempo? O espírito tem de insuflar também o tradutor, para que este deixe a marca do divino na nova versão. A nova versão não pode ser apenas uma versão, mas deve ser a “versão autorizada”. E autorizada não apenas pelo rei, mas pelo próprio Deus, pela própria origem da religião.
A (boa) tradução traz em si a marca da fidelidade — fidelidade do mesmo tipo que também marca o seguidor de uma religião. Lutero dizia que nenhum falso cristão poderia traduzir com fidelidade — pois lhe faltava (ao falso cristão) justamente a principal qualidade que se espera de um bom tradutor. Não há tradução, não há religião, sem fidelidade. Não pode haver maior prova de fidelidade, e de inspiração, que a exata coincidência de setenta traduções independentes.
A história da grande matriz da literatura ocidental está inextricavelmente marcada por estratégias de tradução. Estratégias que deixaram rastros diversos, farejados agora e sempre pela fina hermenêutica de exegetas obstinados. Traduções que poderiam ter significado grandes rupturas foram (e são) apresentadas como prova da continuidade da tradição, como prova da preservação incólume da Palavra. A preservação da tradição, via tradução, exige não apenas precisão (absoluta, como no caso da Septuaginta), mas também flexibilidade e imaginação para acomodar esperanças e ajustar expectativas.
Muito já se falou dos pontos de interseção entre tradução e religião. Eu mesmo já falei do tema, aqui neste mesmo espaço. Não era preciso escrever mais. Há espaço, breve, estreito, para falar de tradução em religião. Não só no cristianismo, claro. Qualquer dia, havendo ânimo, tempo e sabedoria, hei de falar sobre tradução e budismo.