Borges e o tempo

Para Jorge Luis Borges, “as grandes obras são as que resistem às más traduções”, obras magnas que nem o tempo nem a tradução conseguem corromper
Jorge Luis Borges, autor de “El hacedor”
01/08/2021

As obras de Jorge Luis Borges são uma fonte inesgotável de reflexões sobre a tradução. Já tive oportunidade, neste espaço, de abordar algumas delas. Aqui, vamos ao livro El hacedor (O fazedor).

Começamos pelo poema Ariosto e os árabes, texto sobre a viagem dos sonhos e da escritura pelo tempo, que é também um passeio por grandes obras da literatura europeia. As estrofes inicial e final nos instilam na mente a gênese e a evolução dos livros e da escrita.

No início, lemos que nenhum indivíduo pode escrever um livro, pois este depende da ação humana comunitária, da passagem larga do tempo. Trata-se, sempre, de autoria conjunta, questão aliás cara a Borges. E nisso se insere a tradução, como operadora do coletivo e como etapa na evolução natural do texto, que, em sua maturação, só poderá ser lido por meio de versões intra ou interlinguísticas.

Antes de voltar ao poema, saltemos ao epílogo do livro, onde Borges reafirma o papel do tempo na criação, sobrepondo-o ao autor individual. Escreve ali que foi o tempo, e não ele, o autor, que compilou a miscelânea, a qual contempla peças pretéritas que não se atreveu a emendar, “porque as escrevi com outro conceito da literatura”.

Já no final do poema, lemos sobre a viagem no tempo do livro silencioso, que assiste, do vale de seu mutismo potencialmente eloquente, ao passar de auroras e longas noites e vidas inteiras e sonhos ansiosos.

A tradução funciona, também, como abertura para o passado. O texto guarda em si uma memória que precisa ser recuperada, analisada, perscrutada, pela perícia do tradutor. Há que arejar o texto velho, velho original, para farejar novas possíveis interpretações.

No mesmo livro, lemos no curto texto Mutações outra reflexão sobre o trabalho do tempo sobre os elementos e os textos. Borges se questiona por que ainda se maravilha diante de velhos símbolos tradicionais da humanidade, “quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere, e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir”. Eis o mistério e o fascínio na tradução.

O tempo atravessa lentamente a escritura, bafejando-a de olvido e quase morte. É mesmo preciso deixar pousar sobre o texto uma boa camada de tempo. Vem depois a tradução, recobrindo paulatinamente o original até que dele nada mais reste de reconhecível como tal, mas revelando novo texto à posteridade. A escritura, afinal, é do leitor, não mais do autor (ainda que coletivo). Como escreveu Clarice Lispector, “depois que [os contos ou romances] se despegam de mim, também eu os estranho”.

Ainda no Hacedor, no poema La luna, lemos o lamento do autor sobre o malefício de mudar a vida em palavras, processo em que sempre se perde o essencial, “lei de toda palavra sobre o nume”. É, outra vez, a velha impossibilidade de verbalizar o Logos. Eis aí uma impossibilidade sempre superada pelo recurso às mais saudáveis imperfeições, incluindo as borgianas.

E, no entanto, se traduzir vida em palavras é um grande desafio, outro grande desafio na tradução é administrar a vida que se insufla em cada fresta do texto, para o bem e para o mal. Vida que nubla a objetividade, como lufada que vivifica e já contém e antecipa o hálito da decrepitude e da morte dos sentidos.

Nessa emaranhada teia de textos, li numa fonte que já me escapa, mas que também se encontra na “Advertência do Tradutor” de Miguel Serras Pereira à sua versão de Dom Quixote de la Mancha, que para Borges “as grandes obras são as que resistem às más traduções”. Essas obras magnas que nem o tempo nem a tradução conseguem corromper.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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