Um pequeno livro de Borges, El hacedor. Composto de textos curtos, minicontos, reflexões, poemas. Entre eles está Borges y yo, no qual o autor especula sobre a relação entre dois Borges: um, o autor do pequeno texto; e outro, o escritor famoso. O primeiro vive para que o outro, famoso, possa “tramar sua literatura”. Em certo trecho, o autor admite que o escritor famoso produziu “certas páginas válidas”, ressalvando que elas não poderão salvá-lo, “talvez porque o bom [as “páginas válidas”] já não é de ninguém, nem sequer do outro [o escritor famoso], mas da linguagem e da tradição”.
O texto e a literatura são paulatinamente absorvidos pela língua, incorporando-se a seu acervo, em processo que, mais rápido nalguns casos do que noutros, acaba apagando o nome do autor. É uma questão de tempo o desaparecimento completo do autor, provavelmente antes de a substância do texto mergulhar por inteiro nas sombras. Ainda assim, algo perdurará na tradição de uma cultura e de um idioma — e esse pouco somente graças à tradução. Expressões consagradas, algumas palavras caras, certas páginas válidas. Até as aspas vão lentamente perdendo a razão de ser.
O autor de Borges y yo lamenta seu lento apagamento, incorporando-se à persona do escritor famoso. Se insurge, se debate, esperneia, mas pouco a pouco soçobra, imergindo no outro, até que pouco ou nada dele reste. E, no entanto, citando Spinoza, aponta que as coisas lutam por perseverar em seu ser. E essa ideia lhe aumenta a lamúria, ante a consciência de que ficará no outro, não em si mesmo. Se aflige, esse outro Borges. Se reconhece menos nos livros do outro do que em obras de outrem, do que na batida penosa de um violão.
O texto vai gradualmente migrando do original à tradução. Incorporando-se a uma nova escritura, em nova roupagem — seja em outra língua, seja em outro tempo da mesma (?) língua. Ainda que lute por perseverar igual a si mesmo, fiel a si mesmo. É uma luta perdida, desde o início. O tempo vai desgastando pelas bordas, mas não poupa o núcleo no final — será sempre uma questão de esperar o suficiente.
O autor de Borges y yo tenta livrar-se do escritor famoso, que o assombra com suas criações, que também foram suas. Vai perdendo a substância de suas invenções, que passam às mãos e à mente do escritor. Este amplia seu alcance, enriquece seu prestígio, estende seus tentáculos e incorpora pouco a pouco todo o texto e todas as ideias do autor, o forçando a arriscar outras fabulações.
A tradução vai absorvendo o original à medida que o tempo o corrói. O texto não desaparece, mas é obrigado a reinventar-se para não morrer. Luta por persistir em seu ser, mas acaba deslocado por uma força irresistível. A tradução amplia sua abrangência, assumindo a originalidade do texto primeiro.
O autor confessa que sua vida é uma fuga contínua. Fuga para longe do escritor. Nessa evasão, tudo perde, e tudo recua para o esquecimento. Enfim, tudo passa à esfera do outro. Tanto que já nem sequer sabe quem escreve o texto: se ele mesmo ou o escritor. Qual dos dois?
O original passa ao olvido. É inexorável. É texto em fuga, capturado apenas por meio de tradução. Dele sempre tudo se perde, quando se procura preservar o ser tal qual inicialmente concebido. Mas dele tudo se pode recuperar, recriar, pela alquimia da tradução. Tanto que se pode até perder a referência certa entre o autor e o tradutor. Afinal, como diria o próprio Borges, “não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere”. Não sei qual dos dois.