Bartolomé Mitre: poeta, tradutor e presidente

Mitre começa o prefácio à sua tradução de A divina comédia com uma metáfora em que assemelha o ofício tradutório a um quadro copiado da natureza animada
Bartolomé Mitre
01/04/2006

Mitre começa o prefácio à sua tradução de A divina comédia com uma metáfora em que assemelha o ofício tradutório a um quadro copiado da natureza animada. O pintor, com suas tintas, dá ao quadro o colorido da vida, já que não lhe pode imprimir movimento. Esse tipo de metáfora é por demais comum no meio da tradução. O tradutor — ou autor — que enfocamos é uma figura rara: Bartolomé Mitre, presidente argentino na época da Guerra do Paraguai, além de historiador, poeta e tradutor.

Mitre teve uma vida atribulada. Nascido em Buenos Aires, passou longos anos no Uruguai e em outros países da América do Sul (Bolívia, Peru, Chile). Militar de carreira, atuou com ardor na política e no jornalismo, tendo fundado e dirigido diários na Argentina e no Chile. Como poeta, escreveu versos de índole romântica e política. Incursionou também pela ficção em prosa (Soledad, 1847) e produziu obras históricas de fôlego, como San Martin. Como tradutor, verteu para o espanhol nada menos que todo o caudal de A divina comédia, além de versos de Horácio, que reuniu nas Horacianas.

Mitre foi um homem inquieto. Rodou o continente, lutou em várias guerras, presidiu seu país num momento delicado da história. E traduziu, empenhou parte de sua paixão na versão da poesia. Não só traduziu, mas teorizou, mesmo que ligeiramente, como se pode ver no prefácio à tradução de A divina comédia.

Vale a pena ler esse prefácio, pelo valor histórico e pela força das idéias. Pode-se discordar dele, como, aliás, discordo, mas isso não diminui seu magnetismo. Mitre é um conservador. Defende, com unhas e dentes, como cabe a um guerreiro, um método de tradução absolutamente literal e fiel (no sentido mais “quadrado” do termo, ou seja, de procurar imitar o máximo possível o original). Propõe — e, talvez, acredite aplicar — um “método rigoroso de reprodução e interpretação”, que se pretende “mecânico e ao mesmo tempo estético e psicológico”. É a única forma, segundo Mitre, de alcançar uma aproximação máxima da “fonte primitiva” de que brota a inspiração-mãe.

Não é certamente um método fácil nem simples de aplicar. Aplica-se, aliás, principalmente à tradução de poesia, a especialidade do historiador argentino. É preciso respeitar, rigidamente, o metro, o ritmo e a rima — toda a estrutura, enfim, do poema. Isso sem omitir nenhuma das palavras tidas como essenciais ao texto. Deve-se imprimir à frase seu movimento próprio, e ao estilo a mesma qualidade encontrada no original. O tradutor precisa não apenas reproduzir a forma e o estilo, mas impregnar-se e impregnar seu texto do espírito mesmo do original: dar à imaginação a mesma rédea que o autor se permitiu; mantê-la no mesmo vôo, no mesmo giro.

Mitre traduz bem o espírito de sua época — ou seja, o conceito de tradução como reprodução, como cópia, que, idealmente, deveria equivaler o mais possível ao original. Daí concordar ele com Chateaubriand, que dizia que as melhores traduções dos textos consagrados são as interlineares, ou seja, aquelas em que a tradução aparece na entrelinha do original. Isso, claro, não garante fidelidade — seja o que for que isso quer dizer —, mas, pelo menos, passa a impressão de contato íntimo, de aproximação ao menos física ou espacial.

Mitre, como tradutor, foi um homem assombrado por um livro — o “insondável poema” — que o perseguiu por mais de quarenta anos. A forma de exorcizá-lo, de entendê-lo, e também de homenageá-lo, foi a tradução que empreendeu — e que, tomando-lhe alguns anos mais, levou-lhe e preencheu-lhe um pouco da vida.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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