Assim se traduziu Zaratustra

As escolhas de um tradutor de Nietzsche pelo caminho mais íngreme, evitando o fácil e o transparente, escolhendo o novo e o nebuloso
Friedrich W. Nietzsche, autor de “Assim falou Zaratustra”
01/02/2024

Assim falou Zaratustra, de Friedrich W. Nietzsche, não é um texto fácil — longe disso. Mário da Silva, que o traduziu para o português (Civilização Brasileira, 1986), resumiu a dimensão do desafio: “obra de um pensador, que, nela, fazia questão de ser também poeta e grande estilista”.

Essa conjugação de conteúdo filosófico com roupagem literária, aliada ao prestígio tanto do autor quanto desta sua obra, exigiu do tradutor cuidado extremado com o que apresentaria ao leitor brasileiro. Silva indicou, em sua Nota do tradutor, que figura como prefácio do livro, haver procurado aplicar “um critério oposto àquele que Dante recomenda aos leitores do canto IX do Inferno: que olhassem, por baixo dos versos, a doutrina que escondiam […] Caber-lhe-ia, no caso, levar em conta, principalmente, os ‘versi strani’, isto é, a roupagem que reveste a doutrina, a sua forma literária”.

A tarefa, contudo, não era fácil. Um dos maiores obstáculos apontados por Mário da Silva é a abundância de jogos de palavras “intraduzíveis” encontrada no original. Explica o tradutor que essa profusão é favorecida pela “riqueza da língua alemã em afixos e vocábulos por eles determinados”. A facilidade do uso dos afixos no alemão, aliada ao estilo do autor, geraria grande versatilidade em termos de criação, combinação e modificação de palavras, abrindo amplo espaço para que o escritor dinamizasse a expressão de seu pensamento e, ao mesmo tempo, complicando proporcionalmente a tarefa do tradutor.

Para enfrentar esse obstáculo, Mário da Silva, conforme ele mesmo nos conta em sua nota, preferiu aderir ao máximo à letra do original, em vez de procurar substituir os jogos de palavras alemães por expressões encontráveis em português. Essa escolha trouxe embutidos ganhos e perdas. A vantagem teria sido contornar o risco de deturpar o pensamento nietzschiano. Mas, como sempre vemos numa tradução, algo do conteúdo se extraviou nesse processo, pois os trocadilhos do autor alemão fazem uma “ponte verbal” para outro pensamento — vínculo sem o qual “uma nova ideia, ou mesmo uma metáfora, na tradução, pareça simplesmente seguir-se a outra e não ser, como no texto original, uma decorrência vocabular dessa outra”.

Outra perda apontada pelo tradutor é representada pela impossibilidade de “encontrar equivalentes para as aliterações, que amiúde, nas frases alemãs, determinam a sucessão de imagens e o próprio ritmo do período”.

Mário da Silva procurou compensar essas naturais perdas de sentido e forma com duas estratégias, “dentro do maior respeito ao pensamento de Nietzsche, na medida em que o tradutor soube interpretá-lo corretamente nessa obra difícil e, como se disse, obscura, nalguns pontos”. A primeira foi tentar preservar “aquele tom, entre profético, lírico, cáustico e, por vezes, simplesmente aforístico e didático ou, então, ai de nós, meramente oratório” da obra de Nietzsche, além de manter a rima e/ou a métrica dos trechos em verso — recorrendo, neste caso, “ao mínimo de liberdades indispensáveis”.

A segunda estratégia foi manter, na tradução, a linguagem e os termos metafóricos encontrados no original, evitando simplificações ou reduções; evitando, em suma, explicar o texto e, dessa forma, privar o leitor do desafio de exercitar sua máxima capacidade de interpretação.

Traduzir nunca será uma tarefa fácil, menos ainda quando se trata de um texto de marcada inventividade. E ainda assim sempre é possível acrescentar desafios ao desafio. Silva, de fato, afirma ter escolhido o caminho mais íngreme em seu trabalho: evitar o fácil e o transparente; escolher o novo e o nebuloso. Assim também falou Zaratustra, mediado por Mário da Silva: “Novos caminhos sigo, uma nova fala me empolga: como todos os criadores, cansei-me das velhas línguas. Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas”.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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