A superstição assombra o mundo de formas variadas. Soprada pela irracionalidade, acende a esperança e atiça o medo. Atua com força também no campo literário, especialmente na tradução da literatura. A crença na superioridade do texto original, em relação a sua tradução, é superstição forte e difícil de debelar. A razão parece ser outra crença, ainda mais forte, na existência de textos estáveis, permanentes ou definitivos.
O original ostenta, em geral, a clara imagem de texto consolidado. Mas não é. Não são poucos os autores que, na releitura, desejam modificá-lo. Alguns o fazem, em edições posteriores. Mesmo quando o texto não se modifica, altera-se sua interpretação — do próprio autor ou de outrem. Sua estabilidade é posta em xeque. Pouco resta de permanência.
A tradução é mais um degrau na escada descendente que leva do Olimpo à planície costeira. Escada cheia de bifurcações, comparável ao rio que se abre em delta antes de desaguar no oceano. Nada nesse processo aponta para a permanência. Tudo parece indicar turva indefinição, terreno de aluvião que se deixa inundar por enxurradas de interpretações diferentes e, às vezes, conflitantes.
O original se apresenta como alvo móvel, que não se deixa capturar, em sua inteireza, com facilidade — às vezes nem mesmo com muita dificuldade. Móvel em muitos sentidos, estrutura de inúmeras e complexas articulações, trajeto de muitas veredas e rio de muitos meandros. Como dar conta de tanta possibilidade? O tradutor se esmera no deixar o máximo de pontas soltas, como no original. Outras soltas ficam — estas não intencionais, criaturas das novas articulações do novo texto. As ligaduras — se necessárias ou possíveis — serão feitas pelo leitor. A sombra de uma ou outra incompreensão sempre permanecerá pairando. Experiência normal de todo leitor.
Essas imagens contrastam com a ilusão da estabilidade que nos é tão cara — e da qual, de certa forma, precisamos para conceituar o original. É essa solidez que lhe confere valor e beleza — qualidades essenciais, aliás, para transformá-lo em produto.
O mesmo princípio vale para o texto traduzido, que precisa se escorar na firmeza e na invariabilidade do original para afirmar-se, por sua vez, como novo original do mesmo texto em outra língua.
A suposta estabilidade do original lhe dá aura de texto sagrado e intocável. A tradução é fator de desestabilização que vem profanar essa impassível permanência. Não só a tradução, claro. Interpretações heterodoxas podem funcionar igualmente como fator de desestabilização — e serão duramente criticadas, como as traduções por vezes o são.
O texto somente não faz o original. Há que haver uma interpretação colada a ele, que lhe dê sentido — a interpretação, digamos, ortodoxa, que funcione como sua versão autorizada. A tradução poderá ou não decalcar a versão autorizada. Caso dela se descole, não apenas representará o natural processo de desorganização-reorganização do texto em outra língua, mas poderá significar verdadeiro desvio rumo a tecido textual distinto.
Em qualquer dos casos — ortodoxia ou heterodoxia — permanece a superstição da inferioridade das traduções — apontada por Borges, entre outros. Superstição que não poupa ninguém, bem incutida que está no DNA da espécie. Traduziu, transigiu — necessariamente. E as concessões não serão sempre unanimemente aceitas: o que nos separa da controvérsia pode ser uma questão de vírgulas. Versões homéricas.