As mil faces de um texto

Em Hilda Hilst, a proliferação de alternativas encanta o leitor e assusta o tradutor
Hilda Hilst, autora de “Do Amor “
27/02/2019

Uma estória deve ter mil faces. Lê-se em O unicórnio, de Hilda Hilst. As mil faces de um texto e suas múltiplas traduções. A proliferação de alternativas encanta o leitor e assusta o tradutor. A este resta trabalhar em faixas de sentidos similares àquelas encontradas no original. Se encontradas forem.

O texto de Hilda Hilst é um desses em que a proliferação de sentidos dispara, muito em razão da escrita criativa e pouco convencional. A relativa dificuldade de compreensão imediata gera reflexão e estimula novos leques de opções interpretativas.

O tradutor vive em busca da palavra certa, do termo adequado. Buscando a palavra e seu sentido. Buscando a palavra viva, “buscando a palavra morta” (H. H.).

A palavra, viva-morta, revigora-se na leitura, e é nesse processo que o texto mostra suas mil faces. É nesse processo — processo eminentemente interpretativo — que a tradução opera como depositária do futuro da escritura.

A escritura espessa, de fluir lento, que se esparrama no papel ganha velocidade na mente do leitor/tradutor. Ganha também as múltiplas projeções de seus sentidos. São as mil faces do texto.

Não é só o duro texto cravado no papel. A leitura e a tradução vivificam-se com a invasão de elementos externos, que se impregnam no texto: a paisagem periférica, fachos de luz, aragens, odores, passantes. Não se trata, claro, somente do texto.

Há também um percurso pelo “reino escamoso da memória” (sempre H. H.), onde o texto físico e suas impressões se mesclam com a bagagem própria do leitor. Ocorre, a seguir, a transposição de novas percepções e imagens mentais em linguagem e, ato contínuo, em escritura. O resultado, claro, é imprevisível e, por isso mesmo, instigante.

Na tradução, como encontrar as escoras da escrita? Onde situar, no novo texto, as ideias percebidas no original? Porque há que encontrar lugar para elas, há que conceber sua expressão em nova roupagem. Há que repercutir, na tradução, os tinidos sentidos que emergem da forma dura das palavras.

Não é sempre fácil dublar a si mesmo nem voltar sobre os próprios passos. Assim o texto se projeta sempre para frente, em busca de novos pilares que lhe sustentem os significados.

Diante das mil faces do texto, onde encontrar essas escoras? Talvez sequer haja como achá-las, na verdade, derrubadas que são a cada leitura. Talvez seja imprescindível erguê-las a cada novo texto, a cada tradução.

Nessa construção, o tradutor não quererá o texto lisinho. Entenderá necessário semear ou deixar aqui e ali ora arestas, ora colunas, para fisgar e orientar o leitor. Para provocar um mínimo de fricção — origem, afinal, das percepções mais agudas.

Quererá o tradutor gravar no texto algo que deixe marcas indeléveis na mente do leitor e, se possível, na memória coletiva de uma língua, de um local, de uma época. Quererá imprimir sua marca própria em sua própria língua, ou, no dizer de Borges, nessa “outra memória que é um idioma”.

E ainda assim, o texto desanda em leituras que se estilhaçam em mil faces.

São mil faces. São muitas alternativas. O tradutor não pode hesitar em destruir, se necessário, seu próprio novo texto, para aproximá-lo de uma imagem mais acesa. A face mais luminosa.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho