As metáforas da tradução

A tradução é o campo por excelência da metáfora
01/03/2001

A tradução é o campo por excelência da metáfora. A começar pelo nome. “Tradução”, em certo sentido, quer dizer “metáfora”. O elo entre os dois termos está na “translação”. Tradução e metáfora são “translação”, ou seja, transporte, transferência de significados. Transporte com transformação. Muda-se não só de lugar, mas de forma.

A tradução, ela mesma metáfora, tentou-se explicar por meio de inúmeras metáforas. Alguns dos livros sobre tradução que mais sucesso fizeram no Brasil trazem listas de metáforas da tradução. Quem lê, por exemplo, O Poder da Tradução, de John Milton, se depara com esta: “É a tradução que abre a janela, para deixar a luz entrar; que quebra a casca, a fim de podermos comer a polpa, que abre a cortina, a fim de podermos olhar o lugar mais sagrado; que remove a tampa do poço, a fim de podermos tirar água…”.

Em José Paulo Paes (Tradução: a Ponte Necessária), temos alguns outros exemplos, como o de Voltaire, que, desculpando-se pela tradução de alguns versos de Hamlet, advertia seus leitores: “ler uma tradução é como ver uma fraca estampa de um belo quadro”.

Os leitores de Paulo Rónai (A Tradução Vivida) têm a seu dispor uma longa lista de metáforas. A de Cervantes, por exemplo: “a tradução é o avesso de uma tapeçaria”. Ou a de Heine, para quem traduzir poesia era como empalhar os raios de sol. Ou ainda a de Dryden, que comparava o ato de traduzir à tarefa de dançar na corda bamba de pés acorrentados.

Autores menos conhecidos também arriscaram suas metáforas. Tatiana Fotitch diria que traduzir é passar o líquido contido numa garrafa esférica para outra de forma cilíndrica. Sir John Denham acreditava ser a poesia um líquido finíssimo — tanto que, na passagem de uma língua para outra, evaporava-se totalmente.

Outros miraram suas metáforas no tradutor, não na tradução. Como lemos em Rónai, Kenneth Rexroth acha o tradutor um bom advogado a serviço do autor. Madame de La Fayette cotejava o tradutor (aliás, o mau tradutor) com um criado bronco, que repetia atrapalhadamente a mensagem a ele confiada. Lope de Vega, quase descaradamente, comparava o tradutor a um contrabandista de cavalos!

André Gide também, sabe-se lá por quê, pensou em cavalos ao refletir sobre a tradução. Achava que o tradutor era como um adestrador de cavalos que tentasse levar o animal a fazer movimentos antinaturais.

Há metáforas mais românticas, como a de Yehuda Amichai, que descreve o ato de ler um poema traduzido como beijar uma mulher através de um véu. Outras comparam o tradutor a um cantor que canta uma música composta por outro; ou a um artista plástico que se vê obrigado a transformar música em pintura.

A lista não acaba aqui. Seria possível escrever quem sabe mais algumas colunas só citando metáforas da tradução. Todas elas, porém, parecem ter um traço em comum: criam uma clara hierarquia entre tradução e original, em detrimento da tradução. É algo que tantas vezes já comentamos neste espaço: uma subvalorização do trabalho do tradutor. Há sempre a idéia do inacabado, do imperfeito, do decepcionante, do impossível até.

E no entanto, traduz-se muito. Noutra metáfora, lembro Geir Campos. A tradução é como o vôo do besouro, o inseto que, tendo tudo para não voar, . . . voa.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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