Aquele que lê, vê ou ouve tenta assimilar o objeto dos sentidos àquilo que já vivenciou, de alguma maneira, a seus conhecimentos, lembranças, sons, imagens. Aquele que lê um texto tenta assimilá-lo à gramática de sua língua (entendida esta, aqui, em seu sentido mais estreito), de sua cultura, de sua tradição.
A assimilação, inevitavelmente, implica alteração, mesmo que sutil. Não parece haver outra forma de compreender. Compreender, assim como traduzir, supõe mudança — inexorável avanço do texto ao longo da linha do tempo.
Assimilar — etimologicamente, fazer similar; ou, por outro ângulo, converter em substância própria — implica compreensão ativa. Não há maneira de compreender passivamente. O exercício do intelecto — como a expressão já indica — exige viva intervenção. Assim como a tradução exige a interferência do tradutor. Ou a leitura a ação do leitor.
A leitura, toda leitura, sempre passa por filtros diversos, e os filtros não são exatamente os mesmos para leitores diferentes — nem mesmo no caso de pessoas de mesma língua materna.
Ciladas da tradução esses filtros. Peneiras que, oferecendo resistência à aquisição direta do texto, alteram o objeto filtrado — retêm elementos, por assim dizer, “espessos”.
Espesso é o texto francamente resistente à tradução: arcaico, culturalmente peculiar, lexicalmente particular, lingüisticamente distante. Espesso é o texto que tende a deixar no filtro boa parte de sua substância. Agudiza o velho dilema de reter para fazer compreender ou deixar passar para tornar “fiel” (mesmo que menos compreensível ou esteticamente pior).
Espesso é o texto que exige, talvez, malha mais grossa — e, paradoxalmente, instrumentos mais finos de leitura, análise e compreensão. Menos reterá a malha ou membrana.
Poroso é o suporte do texto. Deixa filtrar sentidos, deixa escapar palavras. Poroso é o suporte — não tela ou papel, mas a materialidade mais dura do texto —, que mina a luz tênue do significado, moldável à capacidade de compreensão do leitor.
Poroso é o suporte do texto. Tinhoso também, arredio à leitura transparente. Envelopa sentidos. Os esconde a não mais poder. Retirá-los? A golpes de picareta, para abrir o invólucro e extrair o conteúdo: palavras blindadas à leitura fácil.
Assim com o texto empareda palavras, palavras emparedam sentidos. Ao tradutor resta entregar-se à rude tarefa de abrir caminho a machadadas. Rompendo o núcleo — anassêmico ou polissêmico — do texto para fazer manar o sentido.
Para o tradutor, anassemia e polissemia oferecem obstáculos semelhantes — a exigência da produção ou da seleção. Seja como for, há que romper a casca para penetrar o sentido, sondar o núcleo que contém a carga do sentido múltiplo ou, talvez, significado ainda em potência.
Há que desdobrar o texto na tradução. Desdobrar, abrir, para compreender. Outro nome da análise-tradução que leva à nova síntese do texto traduzido.
Desdobrado, traduzido, o texto inicia novo ciclo de produção de significados, desdobrando-se aos olhos de diferentes leitores — ou mesmo sucessivamente, aos olhos do mesmo leitor — em camadas múltiplas de compreensão.
Assimilação, filtração, absorção, incorporação, desdobramento — novas-velhas metáforas da tradução. Outros nomes para o ofício do tradutor?
Assim é a tradução: o eterno jogo do diferimento dos sentidos. A próxima tradução será sempre melhor e mais completa.