Ainda os fatos nus

"A hora da estrela", de Clarice Lispector, impõe diversos desafios à tradução ao narrar fatos, emoções e ideias do alter ego Rodrigo S. M.
Clarice Lispector, autora de “A paixão segundo G.H”
01/02/2022

A hora da estrela, de Clarice Lispector, como comentei na coluna anterior, contém rico acervo de reflexões sobre linguagem e literatura, que podem muito bem ser aplicadas, com ajustes devidos, à tradução. Ali Lispector se apresenta como Rodrigo S. M., espécie de seu heterônimo, e é por intermédio dele que expressa suas instigantes ideias, algumas das quais vamos retomar a seguir.

Há que recordar, antes de tudo, que Rodrigo S. M. pretende, em seu livro sobre Macabéa, ater-se aos fatos; pretende relatar, de forma singela, a história de sua vida e morte. Mas não deixa de fazer uma ressalva importante: “Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona”.

Há os fatos, os quais tenciona narrar. Mas, claro, também há algo que vai muito além dos fatos e que o “autor” não consegue contornar, colocando em risco seu projeto original. Rodrigo S. M. se equilibra entre os polos dessa tensão, que o assombra: os fatos, que parecem simples de contar; e suas impressões, que, esquivas, não se deixam apreender e expressar facilmente. Tudo a ver com o esforço que se faz em qualquer tradução, onde o texto no papel parece claro, passivo, pacífico; mas, quando se intenta interpretá-lo ou trasladá-lo a outro ambiente, mostra-se quase indomável: sussurros que desconcertam e clamam por um quê pessoal do tradutor, que tem de se inscrever na escritura.

Mas a simplicidade é a meta, e o “autor” quer manter o texto despojado, a fim de realçar os fatos e a ação: “… O que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes. Pois o que estarei dizendo será apenas nu. […] E tem fatos. Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura — fatos que são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir”.

Rodrigo S. M. vai e vem, oscila em seus pensamentos e na interlocução com o leitor, se debate nessa tensão entre fatos e sussurros, entre a palavra dura e seus sentidos vaporosos e elusivos. Quer expressar os fatos, mas percebe que necessita também transmitir um algo mais, que indique pelo menos parte de seu estado de espírito. E essa tradução não é nada fácil: “Bem, é verdade que também queria alcançar uma sensação fina e que esse finíssimo não se quebrasse em linha perpétua. Ao mesmo tempo que quero também alcançar o trombone mais grosso e baixo, grave e terra, tão a troco de nada que por nervosismo de escrever eu tivesse um acesso incontrolável de riso vindo do peito”. Como fazer isso, como traduzir isso, transportando-se do agudo ao grave para comunicar ao leitor suas sensações?

Essas perguntas ficam no ar, pairando ao lado da forma e da substância mesmas da narrativa, que Clarice-Rodrigo procura definir. Só que a definição tanto se resume que se desfaz em dúvida, a qual caberá ao leitor tentar elucidar: “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta.”

O conceito oculto de tradução parece permear toda a seção introdutória do livro. O “autor” quer narrar fatos duros, mas também procura se expressar, exprimir um sentimento e uma percepção que lhe são próprios. A aparente contradição aflige Rodrigo S. M., mas de repente um pensamento o consola: “Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca”. Essa cópia, que é tradução — isso se percebe claramente ao longo do texto —, nada tem de mecânica, mas exige do escritor — Clarice-Rodrigo — os mais arrojados engenhos. Para deleite do leitor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho