Comento, uma vez mais, algumas passagens do livro Crítica e tradução (2016), coletânea póstuma de textos de Ana Cristina Cesar. Observadora arguta e contundente do processo de construção do texto, a poeta nos leva a refletir sobre diferentes estratégias e intervenções do tradutor, sobre os objetivos e resultados possíveis, sobre meios de aferir a precisão de uma tradução.
ACC, em uma passagem em que considera a tradução de dois tipos de textos literários, aponta os elementos essenciais a que o tradutor deveria se ater em cada caso: “Todo mundo sabe que, em poesia, o tradutor deve levar em conta, acima de tudo, o ritmo. Em prosa, o caso é diferente: o tradutor tende a concentrar-se em problemas semânticos”.
ACC se alonga, em especial, sobre a tradução do texto poético. Em certo trecho, a autora especula sobre as relações entre a tradução e o poema, assinalando que os dois textos tendem a avançar em sentidos opostos: “Essencialmente, qualquer ato de tradução extrapola o texto original, explicita sua inerência semântica — numa palavra, diz muito por medo de dizer muito pouco. Portanto, a mecânica criativa natural da poesia [a condensação] se opõe diretamente à mecânica criativa natural da tradução [a inflação, conforme conceito de George Steiner]. Em princípio, traduzir um poema é como nadar contra a corrente”.
Ainda sobre a versão de poemas, Ana Cristina Cesar se inspira em traduções e reflexões de outros autores para tirar suas próprias conclusões a respeito da mecânica desse ofício: “…traduzir poesia, como diz Augusto [de Campos] […] não é exercício de divulgação; é sim um modo de ler criticamente a obra, ‘quem sabe até revivê-la em alguns momentos privilegiados’”.
Ao comentar a versão de Campos, intitulada Elegia, para o poema Elegy XIX: To his mistress going to bed, de John Donne, ACC aponta na intervenção do poeta concreto “o limite onde vacila com garbo e perícia o nome tradução […] [pois] o teor de sacanagem do original é destilado nos cortes e montagens da tradução […] os segredos que uma tradução pode guardar”.
Para a poeta, “Augusto de Campos encara sua tarefa de tradutor como a máscara de uma máscara de uma máscara”, em exercícios que parecem ao mesmo tempo aproximar (máscara como texto legível) e afastar (máscara como lente opaca) o leitor do original.
ACC também comenta o trabalho tradutório de Manuel Bandeira, ao analisar a recriação que o poeta oferece para cinco poemas de Emily Dickinson, traduções essas que ACC considera manterem o estilo da autora e possuírem “uma densidade de expressão que não dá margem a qualquer tipo de sentimentalismo”. Para a poeta-tradutora, “O resultado é desconcertante e parece indicar uma prática de tradução que absorve o texto original e se concentra na reconfiguração de um tema favorito”.
Em esforço de sintetizar suas considerações sobre a tradução da poesia, ACC define os seguintes critérios para avaliar a tradução de poemas: “…como regra, poderíamos dizer que as melhores traduções são aquelas que: 1) procuram reduzir a taxa de inflação ao mínimo [ou seja, evitam alongar o texto]; 2) tentam absorver o esforço original de dar condensação ao poema; e 3) procuram encontrar mais equivalências para esse esforço específico do que para o significado original”.
Eis aí um roteiro possível, e bem fundamentado, para alcançar uma boa tradução poética. Contudo, não pareceria exagero tentar ir um passo além, em empenho por alcançar uma mescla de elegância e economia da expressão (sintetizada pela condensação, itens 1 e 2) com a preservação da força das ideias fundamentais do poema (extrapolação do item 3). Tarefa do tradutor.