ACC e a tradução (2)

Em suas traduções, Ana Cristina Cesar está também interessada na “presença literária” do autor
Ana Cristina Cesar, autora de “Crítica e tradução”
01/11/2022

Volto ao livro Crítica e tradução (2016), coletânea póstuma de textos de Ana Cristina Cesar. Lemos, nessa obra, uma série de reflexões interessantes de ACC sobre o ofício da tradução literária, entremeadas dos veios poéticos que permeiam seu texto.

Começamos com uma definição específica de ACC, mediada por sua rica experiência na área: “tradutora [é] alguém que procura absorver e reproduzir em outra língua a presença literária de um autor”. A autora comentava sua tradução do inglês para o português do conto Bliss, de Katherine Mansfield. Essa definição implica um duplo envolvimento estreito: do tradutor com o autor (e não apenas com o texto); e do autor com o original.

Essas relações de próximo envolvimento não são necessariamente “naturais”, em especial se se considera que o primeiro caso exige esforço e estudo intensos por parte do tradutor; e o segundo poderia supor não apenas a relação normal criador/criatura, mas também (como de fato supõe ACC, em sua análise da tradução de Bliss) a íntima inserção do autor em seu texto — ou seja, uma relação pessoal de envolvimento emocional.

Interessa reter dessa definição o conceito do tradutor como alguém que não apenas absorve e reproduz o texto, mas também aquilo que ACC chama de “presença literária” do autor. Algo que certamente vai além do texto, pois nele insere aspecto mais amplo, que exige mais estudo e análise mais profunda.

Nesse processo de maior envolvimento e intimidade com o original, o tradutor pode tender a também se projetar com mais intensidade no texto traduzido, como o fez ACC em sua tradução de Bliss. A poeta-tradutora comenta que, naqueles trechos em que notava sensibilidade especial da protagonista do conto, lançava mão de mais liberdade e criatividade: “Eu me preocupava mais com o estudo da dicção e do tom do que com uma tradução exata, o que me levou a empregar palavras portuguesas mais ricas e também recursos de natureza poética. Algumas vezes não hesitei em traduzir palavras inglesas de uso comum por termos, em português, de caráter inteiramente literário, desde que o resultado obtido resultasse ‘natural’ e corrente”.

Ana Cristina Cesar, nesses trechos, se mostra mais interessada, de fato, em revelar a substância literária do original e de sua autora — vazada em linguagem mais colorida, permeada de uma visão pessoal da literatura — do que o tecido intelectual da escritura.

Essa estratégia é reforçada em outro comentário da poeta, que aponta aqueles trechos em que a tradutora mais se enreda no original e nos quais sente mais obrigação de esclarecê-lo: “Uma tradução anotada pode ser encarada como tarefa fundamentalmente técnica. No entanto, se nos indagarmos sobre as razões que levam à concentração de notas em determinados momentos da história, concluiremos que o comentário técnico é inconscientemente conduzido por pontos literários centrífugos, isto é, pelo conteúdo. O tradutor se vê mais envolvido (pessoal e profissionalmente) pelos trechos em que a história se intensifica, sentindo, assim, maior necessidade de explicá-la”.

Os comentários de Ana Cristina Cesar nos levam a projetar um texto traduzido que contempla, de um lado, movimentos de maior esforço de tradução e explanação — naqueles trechos de maior carga emocional, que mais seduzem o tradutor — e, de outro, momentos em que a versão tende a se revelar mais estática e fria: mais literal talvez.

O tradutor, afinal, é suscetível aos transportes de inspiração que o texto lhe insufla. Busca nele as ranhuras por onde possa fluir e fulgir seu espírito. Oferece ao leitor, pela sua lente, um dos acessos ao original, entre outras tantas leituras possíveis.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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