ACC e a tradução (1)

As muitas explicações de Ana Cristina Cesar ao traduzir um conto de Katherine Mansfield
A poeta Ana Cristina Cesar
01/10/2022

A obra de Ana Cristina Cesar, além de revelar uma poeta única no cenário da literatura brasileira, tem fortes vinculações com a tradução e a reflexão sobre esse ofício. O livro Crítica e tradução (2016), coletânea póstuma de textos da autora, dá uma boa visão dessa profunda ligação de ACC com a prática e o estudo de transposições literárias.

Um dos destaques de Crítica e tradução é a versão comentada de ACC, do inglês para o português, do conto Bliss, de Katherine Mansfield. O trabalho foi apresentado como tese para obtenção do grau de Master of Arts na Universidade de Essex, em 1979-1981. Baseiam-se nessa seção do livro as reflexões que passo a desenvolver a seguir.

O caráter acadêmico do trabalho de ACC gerou riqueza de notas da tradutora (80, no total, para um conto relativamente curto). Detalhe importante: as notas foram traduzidas do inglês para o português por Maria Luiza Cesar — há aqui, portanto, mais uma mediação a ser considerada pelo leitor brasileiro.

Interessante notar os comentários que a poeta-tradutora faz no tocante às notas de rodapé que inseriu em sua tradução de Bliss. ACC aborda a forma como as criou, o conteúdo que as estruturou e, num segundo momento, o fio condutor que usou para organizá-las em sua tese. ACC afirma haver expressado, nas notas, o que acreditava ser “a tarefa do tradutor” [supostamente, explicar as razões de suas escolhas], enquanto, paralelamente, admite ter ido além, ao não conseguir evitar “algumas exclamações subjetivas (impróprias de um tradutor)”.

Afirma também, sobre a organização das notas, haver tentado agrupá-las e classificá-las “a fim de estabelecer um tipo de tabulação que desvendasse o movimento e os motivos ocultos por detrás da tradução”. Indica que as notas são, de algum modo, ditadas pelo próprio movimento do texto, “acompanhando as variações estruturais da história”, a qual, em sua visão, estaria “basicamente ditada e organizada pelo tom, que está em perpétua (e simétrica) oscilação”.

As notas versam principalmente sobre questões sintáticas. Mas tratam também de diversos outros aspectos, como questões lexicais, de tom, de ritmo.

A poeta comenta que a prevalência de temas sintáticos poderia sinalizar “que esse aspecto constitui um dos problemas fundamentais da tradução em prosa”, especificando que o motivo principal foi a necessidade de contração sintática e de economia, “visto que a língua portuguesa é, intrinsecamente, menos econômica do que a língua inglesa”.

A propósito dessa questão, vale trazer à baila que Robert Scott-Buccleuch, tradutor de Dom Casmurro para o inglês, destacou, como uma das dificuldades que teve de enfrentar, o fato de o português ser “uma das línguas europeias mais sintéticas”, enquanto o inglês, “talvez a mais analítica”. Interessante notar, nessas avaliações de tradutores que trabalharam em sentidos inversos, a avaliação do português, vis-à-vis o inglês, como língua ao mesmo tempo mais sintética e menos econômica. Talvez esse problema de concisão-economia textual esteja menos vinculado às características de cada idioma do que à necessidade de explicar — e não apenas traduzir — o original.

Uma das curiosidades da tradução de ACC para o conto Bliss foi a versão de pear tree (pereira) como “árvore”. ACC esforça-se por explicar essa intervenção generalizante argumentando o suposto estranhamento do leitor brasileiro diante do termo que define um pé de pera: além de árvore “exótica”, pereira seria uma palavra “desarmoniosa e inexpressiva (em termos de experiência)”. A tradutora optou por evitar o suposto estranhamento, buscando naturalizar o termo, ainda que com evidente perda de conteúdo, inclusive porque a pereira tem papel relevante no texto.

E de fato é sempre assim: o tradutor transfere ao texto traduzido muito de si, de suas crenças, de seu nome, de seu prestígio.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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