A triste trivialidade de toda tradução

Um dos maiores problemas da tradução literária não são as inúmeras, às vezes quase intransponíveis, dificuldades que apresenta
01/10/2009

Um dos maiores problemas da tradução literária não são as inúmeras, às vezes quase intransponíveis, dificuldades que apresenta. Dificuldades existem mesmo para que sejam superadas (ou existem até que sejam superadas). O problema maior reside num fato óbvio da tradução, de qualquer tradução: o ato de traduzir é trivial.

Qualquer um pode traduzir. Todo mundo traduz, quase o tempo todo. Diria August Wilhelm Schlegel que a mente humana praticamente só faz isso: a soma total da sua atividade consiste precisamente nisso: traduzir. A trivialidade da operação, seu caráter absolutamente corriqueiro, conduz a sua naturalização, e à sua depreciação. É tão natural fazê-lo que nesse ato não pode haver muito mérito nem muito valor.

Eis porque a tradução, incluída a literária, é muitas vezes olimpicamente desprezada. Não é incomum ler a crítica de um livro traduzido sem que sequer se mencione o tradutor, como se o texto se houvesse traduzido como que por encanto, ou por algum milagroso processo automático. Como se o autor do original tivesse ele mesmo escrito a tradução, como se aquele texto ali não tivesse sido escrito a (no mínimo) quatro mãos. É tão natural traduzir que o processo, ou seu condutor, não merece muita (ou nenhuma) atenção.

A crítica da literatura traduzida deveria sempre trazer menção, em um parágrafo que seja, à tradução — a sua qualidade, a suas carências, a seu estilo (sim, porque também há estilos de traduzir). Mas, como se sabe, o espaço é sempre curto e será sempre o original (mesmo que não mais esteja ali) o foco da atenção, tanto do crítico quanto do leitor.

A trivialidade da tradução joga contra o tradutor: desvaloriza sua escritura, apagando-a em benefício do original. Milagrosamente, o original emerge do novo texto e toma seu lugar, numa espécie de contracorrente tradutória que faz refluir para o espremido espaço entre as fibras do papel (ou para trás da tela do computador) a letra produzida pelo tradutor. Produzida às vezes com sangue e suor.

A trivialidade da tradução a destrói e coloca algo em seu lugar, algo que não é nem o original nem mais a tradução: o texto como fantasma de si mesmo, sem identidade, ou de caráter indefinível. Não deixa de ser conveniente para alguns, e para algumas editoras, que isso aconteça. Funciona como disfarce para o mau tradutor e como argumento para o mau pagador: traduzir é trivial, e como toda atividade trivial deve ser mal paga, mal falada e mal amada.

Impossível amar a tradução. Como dizer: “a minha tradução preferida”, “a minha tradução inesquecível”? Coisa para eruditos, e só. Para quem faz do estudo de um texto, ou de uma literatura específica, a obra de sua vida. Para o resto da humanidade, a tradução não passará disso: uma atividade trivial. O advento do computador aprofunda esse sentimento. É fácil traduzir. Basta colar o texto num programa qualquer de tradução automática on-line e pronto. O resultado não será muito pior do que uma má tradução humana.

Ser resultado da operação mais trivial da mente humana é a grande maldição que carrega o ato tradutório. Disso não há escape: é espezinhada por ser justamente o fundamento. Por mais que a literatura seja o resultado de uma longa e inescrutável cadeia tradutória, para ela, literatura, a tradução não deixará de ser uma espécie de prima pobre e vadia.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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