Um dos maiores problemas da tradução literária não são as inúmeras, às vezes quase intransponíveis, dificuldades que apresenta. Dificuldades existem mesmo para que sejam superadas (ou existem até que sejam superadas). O problema maior reside num fato óbvio da tradução, de qualquer tradução: o ato de traduzir é trivial.
Qualquer um pode traduzir. Todo mundo traduz, quase o tempo todo. Diria August Wilhelm Schlegel que a mente humana praticamente só faz isso: a soma total da sua atividade consiste precisamente nisso: traduzir. A trivialidade da operação, seu caráter absolutamente corriqueiro, conduz a sua naturalização, e à sua depreciação. É tão natural fazê-lo que nesse ato não pode haver muito mérito nem muito valor.
Eis porque a tradução, incluída a literária, é muitas vezes olimpicamente desprezada. Não é incomum ler a crítica de um livro traduzido sem que sequer se mencione o tradutor, como se o texto se houvesse traduzido como que por encanto, ou por algum milagroso processo automático. Como se o autor do original tivesse ele mesmo escrito a tradução, como se aquele texto ali não tivesse sido escrito a (no mínimo) quatro mãos. É tão natural traduzir que o processo, ou seu condutor, não merece muita (ou nenhuma) atenção.
A crítica da literatura traduzida deveria sempre trazer menção, em um parágrafo que seja, à tradução — a sua qualidade, a suas carências, a seu estilo (sim, porque também há estilos de traduzir). Mas, como se sabe, o espaço é sempre curto e será sempre o original (mesmo que não mais esteja ali) o foco da atenção, tanto do crítico quanto do leitor.
A trivialidade da tradução joga contra o tradutor: desvaloriza sua escritura, apagando-a em benefício do original. Milagrosamente, o original emerge do novo texto e toma seu lugar, numa espécie de contracorrente tradutória que faz refluir para o espremido espaço entre as fibras do papel (ou para trás da tela do computador) a letra produzida pelo tradutor. Produzida às vezes com sangue e suor.
A trivialidade da tradução a destrói e coloca algo em seu lugar, algo que não é nem o original nem mais a tradução: o texto como fantasma de si mesmo, sem identidade, ou de caráter indefinível. Não deixa de ser conveniente para alguns, e para algumas editoras, que isso aconteça. Funciona como disfarce para o mau tradutor e como argumento para o mau pagador: traduzir é trivial, e como toda atividade trivial deve ser mal paga, mal falada e mal amada.
Impossível amar a tradução. Como dizer: “a minha tradução preferida”, “a minha tradução inesquecível”? Coisa para eruditos, e só. Para quem faz do estudo de um texto, ou de uma literatura específica, a obra de sua vida. Para o resto da humanidade, a tradução não passará disso: uma atividade trivial. O advento do computador aprofunda esse sentimento. É fácil traduzir. Basta colar o texto num programa qualquer de tradução automática on-line e pronto. O resultado não será muito pior do que uma má tradução humana.
Ser resultado da operação mais trivial da mente humana é a grande maldição que carrega o ato tradutório. Disso não há escape: é espezinhada por ser justamente o fundamento. Por mais que a literatura seja o resultado de uma longa e inescrutável cadeia tradutória, para ela, literatura, a tradução não deixará de ser uma espécie de prima pobre e vadia.