Em seu livro Contos d’escárnio — textos grotescos, personagem de Hilda Hilst menciona ter encontrado, entre as anotações de um falecido autor, frase que resume o argumento de uma narrativa cujo texto integral desconhece: “o conto é a tragédia do tradutor, um homem que percebe a irreversibilidade do mal e enlouquece”. Há apenas esse argumento, nada mais. O resto precisa ser inventado, se não intuído.
A irreversibilidade do mal é a irreversibilidade do sentido do texto, que nunca retrocede ao original, mas sempre aponta para a tradução e a deturpação — e aí está o mal e o erro. O sentido é sempre único e irreversível, como o tempo.
Mesmo o Logos transcriado em escritura não é mais Logos e mergulha na corrente de todo texto — a mesma corrente irreversível, de sentido único. Transformado em texto, o Verbo se presta à polêmica e à divisão, de maneira irrecuperável.
A tragédia do tradutor é seu horror diante do texto, diante do texto que não consegue traduzir, que não deveria traduzir, que resiste em traduzir por causa do mal que dele certamente advirá.
O tradutor pode evitar? Pode evitar a marcha do texto, sua marcha inexorável, o rumo inescapável de seu próprio ofício, de dar vazão ao texto e a suas ideias? Poderá evitar, ousará impedir?
Pois todo texto tem sua própria lógica, a lógica da expressão multifacetada, da distorção dos sentidos, da obsolescência seguida de um ressurgimento envolto em nova roupagem (tradução). O texto tem sua própria lógica, uma lógica de evolução e extrapolação. Evolui ainda que parado, isolado, esquecido, não lido. Evolui no sentido da alteração dos sentidos.
É como a água que sempre encontra por onde escorrer, por mais que tentemos bloqueá-la, calafetando, impermeabilizando o substrato. Não há barreiras que contenham o texto em seu sentido de proliferação. Como a natureza, sempre vai encontrar maneira de expressar-se; como a água, sempre vai encontrar brecha por onde escorrer e infiltrar-se.
O conto é a tragédia do tradutor, que percebe a irreversibilidade do mal. O mal está ali entranhado no texto, e ao tradutor não parece haver artifício que lhe permita impedir sua transmissão aos novos leitores, às futuras gerações.
É como o profeta maravilhado com a perfeição do Verbo e, ao mesmo tempo, estarrecido pela consciência de que sua tradução em escritura provocará irremediavelmente o decaimento, a corrupção e toda uma cadeia de incompreensões, lutas, sangue e morte. O mal, enfim, que teme o tradutor e cuja consciência o leva à loucura — e possivelmente à morte.
Eis a irreversibilidade do mal, o impulso de algo que nada poderá deter em sua marcha rumo à dissolução, marcha que arrasta o texto à transformação descontrolada; que arrasta o tradutor ao desespero ante uma sensação de inutilidade.
A tragédia do tradutor é uma certeza. A certeza do fracasso, a convicção da impossibilidade de cumprir plenamente a tarefa. A clara percepção da irreversibilidade do mal, da inevitabilidade do curso de todo texto, que escapa às mãos do autor, que escorre pela pena do tradutor, resvala pelos dedos e pelos olhos do leitor e se perde no caminho do futuro. Impossível capturá-lo por inteiro. Temos no máximo um fotograma desse longo filme, que não para de passar.
Fico aqui pensando se esse fundo sentimento de impotência diante do texto não poderia ser de alguma forma sublimado e usado em favor de uma nova tradução… Poderia? O que pode afinal fazer o tradutor?