Desnudar, desmaterializar, para reconstruir. O original, necessariamente, passa por um processo de desnudamento, ao longo de seu refazimento — a tradução. Descascar o núcleo, para vê-lo por inteiro — o núcleo da mensagem, aquilo que não pode deixar de ser comunicado, aquilo sem o qual o texto perde sua âncora — não a marca do literário nem o traço distintivo do autor —, mas aquilo que faz gravitar, em torno de si, toda a adjetivação.
Retirar lentamente, com cuidado, com escova de cerdas macias — como num trabalho arqueológico —, as camadas sobrepostas sob as quais se esconde o elemento detonador da própria originalidade do texto autoral. Camadas, fantasias, com as quais se disfarçam as arestas vivas do núcleo narrativo. Desnudado, lacera. Coberto, com textura aveludada, arranha devagar e seduz.
A tradução se constrói como análise — sempre —, mas se resolve não na síntese, mas na nova criação — transmutação. Prova da validade de um texto. Espécie de prova real. Só é digno de sobrevivência o texto que tende a atrair a sempre traiçoeira tradução. Rito de passagem rumo à eternidade e ao doce afago do reconhecimento. Legitimação de um texto via tradução. O ofício desprezado é o que iça o texto a um novo patamar.
Desnudado, vê-se de fato o que o texto quer dizer. Se é que quer dizer alguma coisa. Se não, para que traduzi-lo?
No texto claramente literário — ficção com pretensão de arte —, o núcleo pode realmente dizer muito, mas muito mais o farão as múltiplas fantasias que em torno dele se constroem Como desprezá-las se é ali que reside — separadamente do significado mais puro do núcleo — a beleza mesma do que se chama literário. Ali a arte não só como enfeite, como como instrumento de deleite. O leitor não quer só o núcleo puro — castanha amarga e dura de roer —, mas a polpa sumosa e macia que o cerca. Desnudar, descarnar, para depois reconstruir, em cima do osso branco e áspero, camadas de carne, nervo, gordura. Tecidos que se fundem num conjunto novo e vibrante — dependente, sim, do original, mas que vai além dele.
Não vou falar do desnudamento do desnudamento — descobrir o porquê da ânsia de desnudar, como ato intermediário do processo tradutório. Longe demais, como perseguir Freud via Derrida. Já há bastante a pensar e fazer nesse meio caminho andado. Basta o núcleo nu, a descoberto, para recobri-lo de capas de tecido de cor viva. Trazê-lo de volta à vida, com arte. O texto desnudado e recoberto — manto novo, novo original, tido como tal, como não tivesse mediado a tradução.
O literário se constrói nas elaborações secundárias, claro. O núcleo como pretexto para a fantasia artística. Um bom núcleo narrativo — ou uma boa idéia, apenas — pode não passar de um bom começo, que se perde na contemplação de sua própria virtude. Há que saber caprichar na fantasia, que reveste o conteúdo de arte.
As camadas sucessivas — elaborações secundárias — não se assentam sem dor. Carne macia sobre osso áspero, ranhado. Fibras que se esgarçam em arestas ásperas. Pinçam, fisgam. Da penosa fricção, nasce um texto novo. Como reprimir o grito?
Grito do autor ao ver seu texto desnudado — rico de conteúdo, com seu núcleo opaco e instigante, mas raso de beleza. Adjetivos roubados, que, pela ausência gritante, mostram com mais clareza a necessidade de toda uma teia de fantasias.
A criação não se consuma sem dor. Sofrimento na criação original, que se deve reproduzir no processo tradutório. Tradução como superação do desespero.