A tradução e o desenvolvimento das línguas

Ainda está para ser contada a história da contribuição das traduções e dos processos tradutórios para a evolução da língua portuguesa.
01/12/2005

Ainda está para ser contada a história da contribuição das traduções e dos processos tradutórios para a evolução da língua portuguesa. Desconheço obra sobre o tema. Outros idiomas talvez tenham estudos sobre o assunto. No trajeto evolutivo de uma língua, a tradução representa elemento de importância nada desprezível. Trata-se de fator de enriquecimento e consolidação, com reflexos notáveis no léxico e na sintaxe.

A literatura, claro, subjaz esse processo. O alimenta e renova. É seu principal motor. Mas há outros. A tradução de textos técnicos tem também seu próprio peso. No português brasileiro de hoje, é impossível deixar de notar as contribuições trazidas pela tradução de textos de informática, só para ficar em um único exemplo. Influência que não se deleta facilmente.

O argentino Oscar Caeiro comenta, em artigo na antiga revista Tradução & comunicação, a importância que tiveram os processos tradutórios no percurso de formação e fixação do idioma espanhol, e em sua preparação para a brilhante trajetória que o aguardava no futuro. O forte e contínuo influxo de idéias e formas estrangeiras representa, para todo idioma, uma oportunidade de desenvolvimento e expansão de horizontes. O modo como cada língua absorve essa influência determina o papel que poderá desempenhar no mundo literário e cultural.

O modo como se comportou o inglês diante do influxo francês em determinada fase de sua história contribuiu para a espantosa explosão de seu léxico, hoje grandioso em função de haver absorvido e transformado palavras tanto do ramo germânico quanto do ramo latino. Deu-lhe também impressionante versatilidade, que hoje se expressa na facilidade com que é apropriado por falantes nativos dos mais diversos idiomas.

Do espanhol, dizia Caeiro que um de seus méritos foi justamente a capacidade que teve de receber e transformar a influência estrangeira, enriquecendo-se dela sem perder sua marcante individualidade. O segredo dessa absorção criativa é fazê-lo com liberalidade e personalidade. Não sei se o espanhol o faz hoje com liberalidade. Talvez tenha mais personalidade que liberalidade, o que poderia vir a tolher seu desenvolvimento. A conferir.

O português brasileiro parece mais receptivo, embora ressurjam, volta e meia, movimentos lingüístico-nacionalistas que tentam barrar a entrada do estrangeiro no vernáculo. Bobagem. O influxo de novos elementos, especialmente via literatura, só pode fazer bem à língua. Sempre foi, historicamente, agente de arejamento e aperfeiçoamento.

A tradução feita com consciência, inventividade e método saberá dosar bem a afluência da substância forasteira, estabelecendo equilíbrio entre formas diversas de apropriação (decalque, aproximação, paráfrase ou pura e simples incorporação). “Uma língua só alcança sua plenitude quando é capaz de incluir em si muitas outras, quando tem os órgãos para assimilar, tornando suas as essências estranhas”, analisa Caeiro.

A capacidade que tem uma língua de traduzir textos estrangeiros revela não só sua adaptabilidade, sua eficiência como instrumento de comunicação, mas o gênio daqueles que se serviram dela para expressar idéias e palavras originalmente concebidas em outro idioma.

A língua, cada uma delas, se confunde com sua longa história de traduções. Em certa medida, cada idioma é aquilo que soube traduzir dos outros.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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