A tradução e a essencialidade dos efeitos

Quanto mais refinado o escritor, mais arguto e preciso, mais meticuloso em suas montagens, mais erudito em suas referências e citações veladas, maior será a quantidade e a qualidade dos efeitos
01/08/2003

Quanto mais refinado o escritor, mais arguto e preciso, mais meticuloso em suas montagens, mais erudito em suas referências e citações veladas, maior será a quantidade e a qualidade dos efeitos. Texto recheado de efeitos, deliberados ou não, é prato cheio para um talvez igualmente belo trabalho de tradução. Quem verte a prosa sempre saborosa de um Rosa, as elipses quase irritantes, não poucas vezes desviantes, de um Trevisan, simplesmente não pode estar alheio à importância dos efeitos literários para uma tradução digna do nome.

Pior defeito de uma tradução é pecar pelo excesso de prudência: sacrificar efeitos em nome de suposta correção — ou pior, da literalidade. Literatura é feita de efeitos bem postos, bem costurados no tecido do texto. Fio que urde e segura uma boa trama. Uma engenhosa distribuição de efeitos pode, de fato, fazer a diferença entre o texto medíocre e o acima da média.

Na tradução, esses efeitos têm de ser recuperados. Falhar nisso é comprometer o texto traduzido e transformá-lo num simulacro insosso. A medida dos obstáculos dá a própria medida da tradução, desde que reconstruídos os efeitos. O efeito, no texto literário, é exatamente, em certo sentido, o que o torna literário. Não que a narrativa seca, metódica e burocrática não seja também um certo tipo de literatura. Mas a dita alta literatura, o texto mais sofisticado e gratificante, simplesmente não pode prescindir desse tempero.

Recuperar esses efeitos, ou, melhor dizendo, recriá-los — e daí o valor de uma boa tradução —, é condição sine qua non para uma tradução relevante. A dificuldade, porém, é identificar — e individualizar — efeitos. Pois, não raro, é mais coisa que se sente do que se diga. É mais fácil perceber que apontar, concretamente, e recortá-los do texto. E é justamente essa dificuldade, essa resistência em se revelar inteiro e claramente, que faz o efeito — a dubiedade, o choque harmonioso de letras e palavras, falsas rimas semeadas com um certo fingir distração. Ali um chiste, aqui uma citação velada, acolá uma imagem incomumente empolgante. A idéia que destoa e contradiz, a princípio, para se revelar surpreendentemente convergente adiante. Efeitos materiais, outros quase puramente sensoriais.

A capacidade de captar algo que se pode definir como o “espírito da época” — ou de duas épocas, estando original e tradução distantes no tempo — não é qualidade descartável num bom tradutor. É a sensibilidade de adivinhar efeitos e recriá-los em outra língua, em outro lugar e tempo. Seria querer demais distribuí-los de forma semelhante. Vale, aqui, perder algo numa página para recuperá-lo, refeito, duas páginas à frente. Não se põe freio à inventividade: sentir a tensão e, dinamicamente, com elementos distintos, interpretá-la no mesmo tom.

A arte de traduzir está também nisso. Recriar atmosferas carregadas, ou então leves brisas amenas. Não seja uma arte só empírica, coisa inata — e portanto barata, que não requer esforço. O grande tradutor se revela no empenho, na persistência, e também na inteligência de desenhar estratégicas que lhe permitam superar as resistências mais acirradas de um texto. Desenterrar os efeitos mais fugidios, fotografar os flagrantes mais ariscos. Depois revelá-los. Parte da tarefa do tradutor, fonte de muito choro e muito riso.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho