A tradução discreta

A tradução implica a passagem de um sistema discreto a um sistema contínuo
30/11/2017

A linguagem é sistema eminentemente discreto. Os textos são compostos por unidades discretas, que não exibem continuidade nem gradações entre si. As palavras funcionam como pacotes de conceitos. Não se consegue perfurar o pacote para derramar seu conteúdo. Assim é o original, assim sua tradução.

O funcionamento do cérebro e a conformação das ideias se nos afiguram constituir sistema distinto, que talvez se aproxime mais de um modelo contínuo, não discreto. Parece ali haver continuidade, fluxo, dificuldade de operar recortes exatos e definir unidades significativas mínimas.

A tradução implica a passagem de um sistema discreto a um sistema contínuo; e, na sequência, o processo inverso de translação do contínuo ao discreto. Duas operações complexas.

A leitura e a compreensão do texto envolvem sua transformação em ideias — incluindo sensações estéticas dificilmente inscritíveis em palavras e textos. A reescritura, por sua vez, envolve a redução da ideia em texto, com a passagem do fluxo do pensamento (contínuo) para o sistema linguístico discreto.

A tradução automática, por sua vez, pretende a passagem direta de um sistema discreto a outro, contornando o sistema contínuo do plano mental. O computador, como a linguagem humana, também opera por meio de sistemas discretos, que não admitem continuidade, gradações e fusões entre seus elementos. As traduções por computador são feitas em pacotes. São “quebradas”, elaboradas aos saltos, e, portanto, inadequadas para o texto literário — embora possam ajudar na compreensão de textos simples, em especial aqueles que prescindam de elemento artístico-estético relevante.

A passagem da ideia ao texto — de um sistema contínuo a um sistema discreto — é fenômeno ainda pouco compreendido. É a redução do Logos à escritura. O Logos como síntese e sistema contínuo — como ideia que só se expressa verdadeira e plenamente em ideia. O Logos como fluxo contínuo, sem interrupções, sem rupturas.

Algo sempre se perde, portanto. De saída, perde-se o caráter contínuo e fluido que parece transitar pela mente na apreensão do texto. Impossível descrever a corrente de imagens que nos desperta a leitura de um texto literário. Impossível inscrever essa corrente no sistema discreto que temos como instrumento de expressão.

Algo se pode ganhar, talvez, por meio da engenhosidade do tradutor. Mas a sensação de perda será sempre mais clara, inclusive para o próprio tradutor. Assim como o autor do original, o tradutor se depara com a limitação que lhe impõe a transposição do sistema contínuo para o sistema discreto. A ideia em palavras não é a mesma, por mais que se esmere na expressão.

O Logos funciona como conceito de ideia e mensagem perfeitas, de apreensão imediata e completa. O momento imediatamente anterior ao ponto de ruptura, em que se instala o sistema discreto e a consequente proliferação desenfreada de sentidos em pacotes. Pacotes que não se podem fundir — cujo conteúdo não se pode verter —, mas que se podem combinar de infinitas maneiras.

Por isso não se pode exigir do tradutor, como operador dessas transposições complexas — discreto-contínuo-discreto —, o controle de todas as suas possibilidades.

A apreensão do texto. A captura da ideia, sua redução, seu registro. É nisso que trabalha a tradução. Fosse simples, seria a mera substituição de palavras — de pacotes de conceitos por outros semelhantes. Não é simples. Nem mesmo entre línguas próximas, de mesma matriz. O tempo, devagar, vai maquinando as diferenças, abrindo e alargando as brechas, até a mais absoluta incompreensão.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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