A tradução de Gilgámesh

Os imensos desafios e dificuldades de traduzir um texto redigido possivelmente no século 14 a.C
Jacyntho Lins Brandão, tradutor de Epopeia de Gilgámesh
01/01/2024

Uma das tarefas mais fascinantes da tradução é recuperar textos antigos escritos em línguas mortas. Não se trata de empresa fácil: além dos naturais empecilhos encontráveis na tradução entre quaisquer línguas, temos adicionalmente, trabalhando contra a transparência, as grandes distâncias culturais e temporais e a necessidade de desenterrar e identificar os restos de um idioma há muito tempo abandonado.

Foi nesse empreendimento que embarcou o tradutor Jacyntho Lins Brandão ao verter para o português, diretamente do acádio, Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh, publicado pela Autêntica, em 2021. A obra é baseada em matriz suméria e atribuída a Sin-léqi-unnínni, que a teria redigido possivelmente no século 14 a.C.

Para superar esses 35 séculos que nos separam do original, Brandão teve que fazer uma série de escolhas difíceis, que revelou em suas anotações. Uma dessas escolhas foi a estratégia de publicar comentários sobre os versos e suas traduções, em seção separada, em vez de notas aplicadas diretamente ao texto. Isso lhe deu amplitude conveniente tanto para explicar detalhes do texto, incluindo sua evolução histórica, quanto para apontar decisões que tomara na construção de sua versão.

Explica o tradutor que suas anotações não constituem mero apêndice, devendo, portanto, ser parte da leitura, para uma melhor compreensão do conjunto da obra: “pretendi escrever não simples notas de pé de páginas, mas comentários de pleno direito, envolvendo não só informações, mas abordagens críticas que procuram levar em conta o que se tem escrito sobre o texto de diferentes perspectivas”.

Os apontamentos do tradutor são particularmente importantes em razão de estar o original corrompido em diversos trechos, com grande número de lacunas, o que torna a versão muitas vezes conjectural.

Seus comentários, conforme Brandão, também lhe permitiram “proceder às escolhas que elenquei […] sem condenar o texto a uma única leitura”. Um bom exemplo dessas escolhas foi a decisão relativa ao próprio título em português, vertido como “ele que o abismo viu” e não “ele que tudo viu”. Pondera o tradutor que a possibilidade de ler o título do poema de duas formas distintas, “ambas legítimas, não constitui nenhum descalabro, bastando considerar que ‘ver tudo’ não necessariamente implica ver cada uma das coisas, mas ‘ver em profundidade’, ‘conhecer a fundo’ das coisas e do mundo, noutros termos, um ‘ver em abismo’”.

As decisões do tradutor, naturalmente, embutem riscos que não podem ser ignorados, por constituírem parte do próprio processo de qualquer interpretação. Brandão, assim, admite que suas escolhas, por mais que bem justificadas, incluem índice variável de discricionariedade: “A cada uma delas, privilegio algo, descartando algo, apenas porque o que privilegio me parece mais relevante da perspectiva de um certo entendimento do poema”.

As escolhas de Brandão incluíram não apenas questões lexicais, mas também sintáticas e editoriais — todas elas com relevante impacto sobre o texto final e, portanto, sobre o resultado da leitura. O tradutor, assim, introduziu títulos de seções e a divisão do texto em estrofes, ambos inexistentes no original, enquanto, ao mesmo tempo, ignorou nuanças métricas em benefício da ordem original das palavras.

Em outros casos, o tradutor, confrontado com as arestas de um texto fragmentado pelo tempo, preferiu evitar soluções reconstrutoras artificiais. A alternativa: manter a dificuldade de interpretação, compartilhando-a com o leitor. Assim, a este caberá a decisão e a interpretação finais, como deve ser.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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