A tradução como remédio para o exílio

Como diria o tradutor Leminski, não há exílio que se compare ao exílio do idioma natal. A tradução, em certa medida, é o remédio do exílio
01/11/2005

Como diria o tradutor Leminski, não há exílio que se compare ao exílio do idioma natal. A tradução, em certa medida, é o remédio do exílio. É o elo que te mantém ligado, de alguma forma, à tua pátria lingüística. O exílio é tanto mais sentido quanto menor a disseminação da língua natal. No nosso caso, falantes de português que somos, o isolamento pode ser brutal. A “última sacanagem de Portugal”, a língua que herdamos nos deixa encalacrados num mundo diminuto e limitado.

A tradução é remédio para isso. É a forma que temos — nós que mal podemos falar português com nossos vizinhos mais chegados — de nos comunicar com algum alcance. Pushkin, que também militava numa língua isolada (embora relativamente menos que a nossa, já que a Rússia lançava forte, e ainda lança, sua influência sobre os países vizinhos), dizia que o tradutor é o mensageiro do espírito humano.

O isolamento que se sente no exílio lingüístico, mais que no exílio geográfico ou político, não se cura apenas com o acesso a fontes em sua língua. É como se fosse preciso mais que isso: o acesso a sua própria cultura na língua do outro, como forma de afirmar a validade e a grandeza de seu universo cultural.

A tradução é um processo de afirmação. O autor traduzido tem, por assim dizer, um ativo a mais em sua conta. Tem mais prestígio, pois vai além de suas fronteiras lingüísticas, geopolíticas, culturais. Rompe barreiras, visita outros mundos. Inclui em seu cartão de visitas, em seu portfólio, um item vistoso e valioso.

Essa afirmação percorre vários caminhos e atinge atores diversos. O tradutor, como elo fundamental e ao mesmo tempo peça descartável do processo, não ganha quase nada em prestígio. Mas de certa forma penetra a alma do outro, ou leva, como mensageiro, um pouco do espírito humano até o outro lado da cerca.

Para o autor, a tradução se reveste de uma importância transcendente. Ao mesmo tempo imortaliza (até onde se pode imortalizar algo em papel ou em meio eletrônico) sua obra e lança seu nome num círculo intelectual novo, num novo mercado consumidor. Ser traduzido faz bem ao ego e ao bolso.

O conceito é claro: o que vale a pena ser traduzido, vale a pena ser lido. A obra traduzida ganha a chancela do estrangeiro, que, no caso do Brasil, é nitidamente tido como superior. Mas mesmo no caso de uma língua hegemônica, como o inglês, ser traduzido é sinônimo de sucesso. É fato a mencionar nas orelhas dos livros publicados na própria terra do autor.

Vendo de outro ângulo, e abstraindo o prestígio que ganha o original em sua própria cultura, a obra traduzida é tida como algo inferior. Não alcança o nível do original, embora, isso sim, lhe confira status mais elevado. É algo que se agrega ao original, por assim dizer. Um apêndice. Apêndice que, paradoxalmente, é para muitos a única coisa que se vê do original.

Traduzir não é para leigos, embora muitos sejam os que se aventuram nesse terreno. Tem esse traço de unir dois mundos, de alguma forma. Tem a sagrada missão de romper o isolamento, de funcionar como ponte, de remediar o irremediável: o fundo exílio de sua língua materna. Nem sei, na verdade, se chega a tanto. Mas deveria.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho