A tradução como relação e miscigenação

Antoine Berman foi um dos autores que enfatizaram o aspecto relacional da tradução: ela é relação ou não é nada
Antoine Berman
01/01/2012

Antoine Berman foi um dos autores que enfatizaram o aspecto relacional da tradução: ela é relação ou não é nada. Podem-se identificar, no ato tradutório, diversas relações distintas que acontecem simultânea ou diacronicamente: entre textos, culturas, línguas e épocas distintas; e entre o tradutor e os textos que ele manipula (tradução e original).

A intensidade das relações localizadas no ato tradutório — especialmente aquelas existentes entre o tradutor e o texto e entre o texto traduzido e seu original — tende a definir a qualidade da tradução. O envolvimento do tradutor com o objeto de seu trabalho é decisivo — a relação passional é aqui desejável, e nada a substitui: nem a preparação teórica mais densa nem o método mais estrito.

O tradutor trabalha naturalmente — e independentemente de sua vontade — contra a pureza das línguas e dos textos. É elemento miscigenador por excelência. A língua-alvo não fica intacta após a operação tradutória: inseminada pelo par tradutor-língua original, gera alterações que determinam novos rumos em sua evolução.

Não fica intacto tampouco o original, que também sofre os efeitos da nova interpretação. Interpretação-tradução que vai além da crítica, ao solidificar-se em novo texto — que corre paralelo ao original, em toda a sua extensão, mas em outra língua (ou na mesma língua, mas em outra configuração histórica).

O impacto sobre o original é tanto maior quanto menor a difusão da língua de partida, pois é então que a tradução assumirá ares de “original” e funcionará como principal fonte de informação sobre o texto primeiro.

A miscigenação se verifica não apenas na natural transformação da língua-alvo — inseminada pelo texto traduzido —, mas também no tecido do texto traduzido. A tradução é terreno por excelência da mistura de línguas, léxicos e estruturas gramaticais. Local de convergência da inspiração, do suor e da arte, cadinho em que se forjam as literaturas.

Não só o texto traduzido é miscigenado, mas esse seu caráter se difunde ao original. Tal fenômeno é mais evidente nos casos em que parte do original se perdeu e passa a ser substituído por trechos traduzidos — que, supõe-se, se encaixariam em lacunas evidentes do original. Mas não deixa de ser fato, em qualquer situação, o impacto miscigenador do texto traduzido sobre o original. Qualquer original, ao sofrer tradução, passa a ter nela concorrente e parceiro. Juntos vão passar a fazer sentidos diferentes — talvez complementares. Aspectos despercebidos no original poderão ser ressaltados, lacunas poderão ser preenchidas, de maneira tal que a interpretação mesma do original poderá ser alterada — seja pela simples comparação entre os textos, seja pela absorção, por parte da crítica, de novos aspectos salientados em traduções.

No campo religioso, essa mistura textual é marcada com o selo do opróbrio: o Verbo é profanado tanto ao passar da palavra oral para a escrita quanto da língua original e sagrada para outros idiomas. Trajetória descendente e degenerante. No campo literário, a miscigenação tradutória aparece como elemento arejador e vivificador. Não apenas do texto literário singular, mas do conjunto da literatura de pelo menos duas línguas. Traduzido, miscigenado, fruto de nova relação, o texto rompe amarras e ganha novos horizontes. Como a natureza, constrói trajeto que despreza a pureza — por seu efeito homogeneizante e empobrecedor — e valoriza a energia inspiradora da mestiçagem.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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