A tradução como obra-de-arte independente

A tradução se justifica, quase sempre, pela necessidade, pela falta de acesso ao original
01/10/2008

A tradução se justifica, quase sempre, pela necessidade, pela falta de acesso ao original. Uma espécie de concessão a essa nossa fraqueza de não conhecer ao mesmo tempo todas as línguas, e todos os seus dialetos, diacronicamente. Mesmo impelida por crua necessidade, a tradução pode existir — e existe, em forma de resistência — como arte. A tradução da obra literária é também uma obra-de-arte. Ou deveria, pelo menos poderia, ser.

Quase nunca se enxerga tradução como arte. Normalmente sequer se exige tradução como arte. Não se trata de uma falha do tradutor (pelo menos não só do tradutor). É questão de como o ato tradutório é visto, de como se vê o papel do tradutor na sociedade (e nas comunidades literárias). Apesar de toda a revalorização recente da tradução, o ofício ainda sofre de um vício de origem quase insuperável: sua natureza supostamente espelhante de algo maior.

A necessidade pareceria estar na raiz dessa espécie de opróbrio. O original impõe a tradução, em seus termos, conforme sua conveniência. A tradução é tida não como outra obra que revela e mesmo dinamiza o original, mas como meio imperfeito de ter acesso parcial a algo que é insubstituível. Quando não se tem mais remédio, como último recurso, se apela à tradução.

Não é suficiente, contudo, explicar pela mera necessidade o relativamente baixo prestígio artístico da obra traduzida. Impelidas pela necessidade, houve já não poucos casos de traduções que se impuseram como verdadeiros originais em sua nova língua. Nova roupagem para velha obra-de-arte. A imagem que se robustece e vivifica ao passar pelo profuso e possante jogo de espelhos da tradução.

A tradução também pode ser vista como arte independente. Não no sentido de produzir-se a partir do nada. Sempre haverá um original, mais ou menos identificável, por trás de todo texto. Sempre haverá uma análise a fazer, uma motivação a buscar ou a construir. Mas se pode pensar, sem forçar tanto os limites do racional, que traduzir não é preciso. A tradução não precisa depender de um móvel prático, não precisa depender da necessidade de comunicação. Pode-se justificar a tradução como processo, e obra enfim, que agrega ao original algo que a leitura pura e simples não pode proporcionar.

A leitura, qualquer leitura, não pode abarcar todas as possibilidades contidas no texto. Um só leitor não faz do texto uma obra-de-arte. Esta se faz da confluência de muitas visões, da soma não só de convicções artísticas mas também de características descobertas no texto, ou a ele atribuídas, por diferentes atores.

A tradução opera em nível mais profundo, em que a efemeridade e a imediatez da leitura, com toda a sua profusão de sucessos sensoriais, dá lugar a uma arqueologia estudada, a um trabalho de investigação muito mais meticulosa do objeto textual. O texto, enredado no jogo de espelhos da tradução, pode conter mais riqueza de possibilidades que o singular original.

A capacidade da tradução de catalisar processos criadores contidos apenas virtualmente no original — processos que o autor não conseguiu, ou não quis, desenvolver em toda a sua potencialidade — é o que pode fazer dela arte em si mesma. Traduzir apesar de não ser preciso fazê-lo. Traduzir sem que se solicite tradução. Traduzir independentemente da necessidade de transferência. Traduzir porque, na tradução, o original se pode tornar múltiplo — ou, se já múltiplo, turbinar sua natural exuberância. Traduzir, enfim, porque pela tradução o original, ao ganhar co-autor(es), conquista dimensões cultural e humana muito mais dinâmicas.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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