A tradução como atualização necessária

Uma das funções da tradução é atualizar um dado texto. Não se trata apenas de passar o original para outra língua
01/06/2007

Uma das funções da tradução é atualizar um dado texto. Não se trata apenas de passar o original para outra língua. Trata-se também de passá-lo para outro tempo. Por isso é que existem traduções de Shakespeare para o inglês moderno, por exemplo. Ou traduções de Homero para o grego atual. Não é despropósito supor que daqui a cinqüenta ou cem anos seja necessário traduzir Machado de Assis para o português da época.

Cada geração, de fato, tem signos próprios, estilos característicos, léxicos típicos. Particularidades que a identificam. Daí a vontade, ou até a necessidade, de impor sua marca sobre um texto original. Especialmente sobre um clássico, que recebe, então, um verniz que o aproxima do leitor. E o leitor dele se apropria como algo de sua época, algo com que se pode identificar. Algo que, inclusive, lhe pode soar atual, em vários sentidos.

O tema tradução não costuma freqüentar as grandes revistas de circulação nacional. Mas edição recente da Veja (23 de maio) trouxe interessante matéria sobre a tradução dos clássicos. Clássicos, aliás, em sentido estrito: obras gregas e latinas. O português brasileiro não é exatamente rico em traduções desse tipo de obra. Há vários clássicos sem tradução (especialmente tradução direta) para o português. Muitas obras contam apenas com traduções já de sabor antigo. Não se pode, portanto, acatar em português a recomendação de John Dryden, que aconselhava cada geração a traduzir os clássicos de novo. Não há no Brasil tradição cultural, nem substrato econômico, para tanto.

O clássico pede a renovação constante de sua expressão. É a necessidade imperiosa de fazer-se ouvir, de chegar a um número maior de leitores. Há, de outro lado, a demanda do público pelo acesso a obras que marcaram a trajetória cultural da humanidade. A tradução opera essa viagem no tempo, buraco de minhoca que conduz o leitor a um passeio no passado distante, que lhe torna acessível a sonoridade de uma língua estranha.

A tradução de um clássico pode ir além, e modificar a forma mesma do original. Casos emblemáticos são as traduções em prosa de obras poéticas como a Ilíada e a Odisséia. Nesse caso, translada-se um clássico não só no tempo, na língua e no espaço, mas também na forma. Leva-se a obra para mais perto do gosto da época atual, em que o público leitor não parece ter muita paciência para ler poesia — e muito menos para ler longos textos em forma poética.

Esse tipo de atualização pode ser de gosto duvidoso, mas tem claramente importante função difusora. É uma forma de atrair um público que jamais leria uma epopéia em poesia, mas que poderia muito bem encarar uma Odisséia em prosa moderna. Para o tradutor, a tarefa de atualização, mesmo dentro da mesma língua, pode se afigurar mais complexa que a tradução de um original contemporâneo para outra língua. A transformação da forma — da poesia para a prosa, por exemplo — pode significar maior complexidade, que exija do tradutor esforço adicional próprio de um duplo processo de conversão de código.

Pode-se encarar esse tipo de tradução como uma espécie de banalização de um texto clássico. Leminski disse certa vez que “traduzir não é deixar mais barato, nenhum original merece ser passado para um repertório mais baixo”. Talvez de fato não mereça, mas o leitor médio, por outro lado, merece a chance de tomar contato com um clássico, ainda que “barateado”. É a tensão entre essas duas demandas que o tradutor (e os editores) deve administrar.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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