Como em tantas outras áreas, também na tradução existe um triste quê de repressão da diferença. Repressão surda e tácita. Inconsciente. Mas eficaz. Perde a tradução. Sofre o tradutor.
A tradução deve ser igual ao original. Quanto mais igual melhor. Mesmo que nem seja possível. O importante, nesse processo, não é alcançar a meta — porque impossível —, mas estabelecer o máximo limite à liberdade do tradutor. Amarras na pena.
A história da tradução é um longo desfiar de traições. Dos mais variados matizes. Contudo, com o advento do autor, nasce também a necessidade de cobrar autoria mesmo do tradutor. Quem antes reinava com ampla latitude de movimentos — senhor do texto alheio que era, e tantas vezes anônimo —, agora deveria se conformar a estreitas faixas redutoras. Quem sabe gozar, com isso, de algum reconhecimento. Cobrança natural de um mínimo de comedimento. Imaginação não com asas, mas arreios. Rédeas curtas.
A diferença em relação ao original — tão natural no processo tradutório — deve ser coibida com firmeza. E mesmo alguma aspereza — seja do editor, seja da crítica, ou mesmo do leitor informado. É fácil, assim, fazer a crítica leviana da tradução. Aquela que não busca analisar em profundidade, mas, em rasantes sobre trechos do texto, é prestes em apontar as diferenças mais gritantes. Mesmo sem saber se aquilo que lhe parece tão aberrante não seria, na verdade, a melhor solução criativa para uma passagem difícil.
Em outras artes, a diferença pode ser valorizada. Na música, a interpretação criativa de uma composição pode render aplausos e elogios ao “tradutor”. Não será assim na tradução. Com textos, em geral a pedra de toque é feita de ferro e fogo. Mínimo espaço de manobra.
Perde-se, na tradução, muitas vezes, o sentido do lúdico. A camisa de força da literalidade — a repressão da diferença — implica a perda, no texto traduzido, do vigor do original. Que extrai parte de sua força do ímpeto da espontaneidade e da vazão livre da imaginação. Como manter esse vigor no texto traduzido se o objetivo for meramente copiar?
Traduzir é buscar fazer o mesmo sentido em outra língua. Nessa travessia, porém, perdem-se sentidos com facilidade. As perdas, muitas vezes, são facilmente identificáveis. Os ganhos, todavia, não se detectam com a mesma ligeireza. Às diferenças se atribui o sinal negativo.
Não sei se sempre foi assim. Não teria havido um tempo em que a tradução — quem diria! — era o terreno onde se revelavam as similitudes entre as línguas? Milagre! Poder dizer (quase) o mesmo em outra língua! Técnica maravilhosa que nos permitia ressuscitar textos mortos e dá-los vivos aos vivos. Não teria havido esse tempo?
A consciência da autoria e a cobrança — em tantos sentidos — de lealdade ao autor e ao original poderiam ter vindo romper o encanto do ofício que se acreditava livre para criar. O acirramento desse processo leva à desvalorização da semelhança e à supervalorização — repressiva — da diferença. De maneira azeda. O resultado é a busca — sempre vã, claro — de uma espécie de pedra filosofal: a mágica da tradução literal. A tradução que não deixa resto de sentido nem rasto de tradutor — apagado, este, sob o nome do autor.
A tradução da literatura, contudo, não poderia descolar-se da essência mesma da literatura — que é criatividade, imaginação. Como espécie de escritura criativa, a tradução da literatura simplesmente não pode ser literal — adjetivo que se manifesta, na tradução, como antítese do literário.