A morte do autor

Pode chocar alguns, soar herético para outros, mas o autor está morto. Que autor? Todos, de qualquer texto
01/02/2001

Pode chocar alguns, soar herético para outros, mas o autor está morto. Que autor? Todos, de qualquer texto. Autor é bicho extremamente frágil, que não resiste ao intenso trabalho de produção de um texto. Nasce o texto, morre o autor. É um sacrifício que faz o autor em favor de seu filho mais dileto, o texto. Pronto o texto, morto o autor, o ex-autor só volta ao texto como convidado. Na verdade, autor não é pessoa. É função do texto.

Não são idéias novas essas. Seus pais são Roland Barthes, certamente conhecido do leitor, e o não menos conhecido Michel Foucault. Os dois autores executaram uma completa dissecação do que chamamos de “autor”. Não sobrou palavra sobre palavra.

O culto do autor, responsável por tanta dor de cabeça dos tradutores, equivale, como diria Barthes, a pôr um travão no texto. É tentar freá-lo, cassá-lo, castrá-lo. É fechar, botar ferrolho e ir embora. É manter o texto longe de todos, oculto, inalcançável. Texto não-lido, para que serve? Lido, ninguém segura a força do texto, que é água morro abaixo.

Uma enxurrada de significados de curso imprevisível. E que exigem do tradutor? Construir a barragem mais poderosa, formar um lago plácido onde se possa pescar todos os sentidos, e pescar com facilidade, como num pesque-e-pague. Utópico, claro.

Por isso é bom que não morra só o autor, mas também o tradutor, que é também, por que não?, autor. Morre o tradutor, nasce o intérprete, como diria o chinês Zhong. Morre o tradutor sisudo, o Pierre Menard que se atribui a tarefa de reproduzir o texto igualzinho era no original. Nasce um ser mais leve, disposto a brincar com os significados, a esquecer o autor, a matá-lo sempre que ele erga a cabeça fora do texto. Nasce o ousado.

O autor, aliás muito mais novo que o tradutor, veio só para aborrecer. Já passa da hora de ir desta para melhor. Antes da chegada do autor, tradutor era dono do texto, não um cara cheio de dedos a querer imitar alguém que já morreu.

Dar ao texto um autor é uma forma de tentar fechá-lo, de tentar (sem sucesso, diga-se) barrar a proliferação desenfreada de sentidos. Se o texto é de Fulano, é sagrado. Não se mexa nele. Ai daquele! Se é anônimo, nada vale. Passa despercebido. Tanto que, há pouco tempo, mandaram um texto de Machado de Assis para uma editora. Foi rejeitado. Sem a “função-autor”, o texto de Machado não passou no teste.

Não que se deva igualar todos os textos, todos os autores. Talento não despreza. Mas o que é talento hoje não será amanhã. Quem rejeitou o texto de Machado que o diga.

Texto é colcha de retalhos feita de citações. Esta coluna mesmo é uma peça compósita, uma montagem de citações. A começar do título, que já foi título de texto de Barthes. Coisas que li, coisas que leio, coisas que ouço, coisas que recorto e colo no texto do computador.

Mais importante que o autor é o leitor. Esse sim, digno de todas as honras. Ele o responsável por dar algum sentido ao texto, dar-lhe uma destinação, uma função, nobre quem sabe. E no entanto ele não existe para a crítica. A crítica só vê, só lê, só consome o autor. Leitor, o que faz realmente o texto, esse passa despercebido.

Esta coluna, meio anárquica, dedico a Cárdias. Outra vítima da autofagia paranaense.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho