À margem das traduções: a voz firme da ortodoxia

Livro interessante, sobre tradução e literatura — ou sobre tradução de literatura —, esse intitulado À margem das traduções
01/11/2003

Livro interessante, sobre tradução e literatura — ou sobre tradução de literatura —, esse intitulado À margem das traduções. O autor, Agenor Soares de Moura, que foi professor e tradutor, é nome conhecido da área da tradução. O livro, organizado pelo também tradutor Ivo Barroso e publicado pela Editora Arx, tem o mérito de reunir num só volume artigos que Moura publicou no jornal carioca Diário de Notícias, entre 1944 e 1946. Morto em 1957, o mineiro Moura persiste como figura singular no mundo da tradução e, especialmente, da crítica da tradução.

Não existem hoje, como arrisco dizer não existiram no passado, críticos que como Moura se dedicaram tenazmente a analisar obras literárias traduzidas para o português do Brasil. Nisso foi único. Mas não só nisso. Moura exibe um estilo todo próprio, marcado pela firme ortodoxia, pela defesa quase intransigente da pureza do vernáculo (muito ao gosto, certamente, de um Aldo Rebelo), pelo tom didático, professoral, e por uma ironia fina e, em certos trechos, um humor que faz rir gostosamente o leitor.

Moura toma traduções de seu tempo e empreende comparações com os originais. Descobre deslizes perdoáveis, incontáveis erros crassos e mesmo pérolas impagáveis, de ridículas e risíveis. Seus artigos são, de ordinário, séries de comparações de trechos do original e da tradução. Nisso está seu grande mérito, e ao mesmo tempo seu grande defeito.

Mérito pela meticulosidade do trabalho. Criticar a tradução literária não é tarefa fácil. Exige, para cada livro, a leitura de dois — original e sua tradução. O tempo, o esforço e a paciência exigidos não são para qualquer um. Moura, na pertinácia de professor, não recua diante do desafio — e ao longo dos 89 artigos do livro aperta, sem dó, a tecla de apontar erros. E não só isso: aponta, também, soluções. O resultado é uma coleção muito rica de exemplos práticos de como traduzir — e como não traduzir.

E Moura não poupa ninguém. Figurões das letras apanham — e muito — nos artigos do tradutor mineiro. Luiz Guimarães Junior, da Academia Brasileira de Letras, Godofredo Rangel, o consagrado escritor Erico Verissimo e, especialmente, Monteiro Lobato. O escritor paulista é, talvez, a vítima predileta de Moura, que surpreende Lobato, numerosas vezes, em deslizes constrangedores.

A obra de Moura, porém, peca pelo que deixa de fazer. Aferra-se tanto ao rigor lexical e sintático que esquece uma análise mais completa e generosa das traduções. Os momentos felizes, por exemplo. As soluções criativas, ou engenhosas. Crítico em todo o rigor da palavra, Moura praticamente não abre espaço para a apreciação positiva. Nisso Ivo Barroso, o organizador do livro, o acompanha com admiração, criticando, na nota de apresentação, a “total permissividade” de hoje, “em que o correto chega quase a ser politicamente incorreto”.

Os olhos de gramático e purista defensor do vernáculo deixam escapar certo colorido das traduções, certas qualidades que o tempo acabaria validando. Palavras e expressões que Moura critica acabaram se incorporando — e enriquecendo — a língua portuguesa: “tráfego pesado”, “fora de questão” etc.

Esse fenômeno, talvez, parecia escapar à argúcia do dublê de professor e tradutor. O valor da tradução como elemento de arejamento e inseminação — curiosamente, mesmo por intermédio do erro. O papel da tradução como fator de transgressão. Mesmo à custa da crítica.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho