É incrível a dificuldade envolvida na tradução de um poema, de um simples poema de poucas estrofes, algumas dezenas de versos, ou nem isso. Tão poucas palavras, tamanha profusão de sentidos. Traduzir poesia não é fácil, e já muito se falou sobre isso, inclusive neste espaço. Mas, e fazer poesia sobre tradução? Assunto árido esse. Das pedras às vezes nascem pérolas.
Um bom exemplo é o poema Tradutor, de Valdir Rocha, incrustado em Títeres de ninguém (Letras Contemporâneas). Não vou falar sobre o livro, que me pareceu bom — interessante conjunção de letras, gravuras e inter-net-atividade. É um poema curto, alguns versos apenas, mas bom food for thought. É uma boa síntese, ou uma síntese possível, do trabalho, do esforço e da arte envolvidos nesse ofício.
Traduzir, de fato, e especialmente traduzir poesia, é penetrar o âmago das palavras e encontrar sentidos insuspeitados (ou mesmo, em outra linha de raciocínio, insuspeitos). É preciso deveras mergulhar, no sentido mais amplo e profundo, na complexidade do texto, e voltar à superfície com uma boa sacola de possibilidades. E contar com uma grande dose de criatividade.
Longe de mim propor exegese do poema de Valdir Rocha, mas vale refletir sobre a tradução como forma de achar direções que as palavras ainda não tinham. Ou que já as continham em potência, e só se esperava alguém que as encontrasse. Os rumos das palavras, das frases e dos sentidos, em geral, não é um tema menor. É um tema que o poeta capta com rara sensibilidade. Que fazer delas? Dar-lhes um sentido é a primeira coisa a fazer. A questão é decidir qual deles, na leitura como na tradução.
É incrível a capacidade que tem a poesia de multiplicar as possibilidades de sentidos e rumos. Na medida dessa multiplicidade cresce a responsabilidade do tradutor. Daí a unicidade aparente das palavras do papel transformar-se em multiplicidade quase incontrolável, e certamente intraduzível em sua inteireza. Sempre há um novo sentido a descobrir.
De labiar o seio, nem é preciso falar. Da intimidade do poeta com as palavras, da necessária intimidade do tradutor com o original. Dessa intimidade, nasce a possibilidade até de melhorar o texto na tradução. Não sei se seria contrariar o espírito ou a intenção do autor, mas às vezes é uma pulsão quase irrefreável. Como reprimir um achado que salta aos olhos e exige expressão, sob pena de eterno remordimento? Difícil segurar.
Parte do problema é essa extrema concisão, que faz o estilo e o deleite de tantos. Parece que a multiplicidade potencial cresce na inversa medida da prolixidade. Quanto menos palavras, mais sentidos possíveis. E maior o prazer na leitura. Torna-se possível quase tudo o que se imagine. A poesia é, em certo sentido, a prosa mais enxuta. É por isso que, em se tratando de texto, tirar pode significar acrescentar sentidos.
Traduzir pode ser, ainda, coisar o nada. Tirar o coelho da cartola. Solidificar um dos sentidos possíveis, mas nada palpáveis. E produzir, inadvertidamente, nova gama de alternativas.
Se despiorar vale um melhorar, fica assentado o vislumbre de um aperfeiçoamento. Até mesmo da verdade absoluta. Que, talvez, pouco tenha de verdade, menos ainda de absoluta. Derrubado o absolutismo, abre-se um leque de relatividades que mete medo só de pensar. Mas, em última análise, isso é problema do leitor. Ou do tradutor.