A curiosa tarefa de traduzir-se

Traduzir não é tarefa fácil. Muitas vezes o autor está distante, no tempo e no espaço
01/11/2007

Traduzir não é tarefa fácil. Muitas vezes o autor está distante, no tempo e no espaço. Quão bom seria tê-lo sempre por perto para tirar algumas das inúmeras dúvidas que nos vêm sobre o sentido de uma palavra, uma expressão, às vezes de toda uma frase. Ou sobre uma dada referência cultural, histórica ou geográfica. Traduzir lado a lado com o autor seria, talvez, a situação ideal. Uma espécie de tradução a quatro mãos, com o auxílio esmerado do autor em pessoa.

Melhor, ainda, seria imaginar uma situação limite, em que tradutor e autor se fundem numa mesma pessoa. Alguns autores bem conhecidos se viram nessa curiosa situação, em que, ironicamente, se pode ser o traidor de si mesmo. Samuel Beckett (Malone morre) foi um deles.

Fernando Pessoa foi outro. Pessoa é todo um caso especial quanto à tradução. Poeta famoso, foi, claro, muito traduzido, para muitas línguas. Autor bilíngüe, escreveu não só em português, mas também em inglês. E traduziu-se, prosa e poesia, do português para o inglês. Foi Pessoa, também, autor de múltiplos heterônimos, alguns dos quais escreveram em inglês. Traduziu-se, de fato, não só a si mesmo, Pessoa, mas também obras de heterônimos seus. Não fosse bastante, traduziu também outros autores, para o inglês e o português. Transitou, portanto, entre muitos tipos diferentes de tradução.

A tradução de si mesmo, ou autotradução, tem características peculiares que a situam num lugar específico da tradução, especialmente da tradução literária. A autotradução de uma obra literária é prato cheio não apenas para a teoria tradutória e literária, mas, talvez, também para a psicanálise. Trata-se, de certo modo, de uma espécie de auto-análise, em que o autor se encontra consigo mesmo, ou, melhor dizendo, com alguém que foi tempos atrás. Encontro às vezes de resultado surpreendente. A surpresa de reconhecer-se. Ou, surpresa talvez não muito agradável, o espanto de não se reconhecer.

Reconhecer-se nem sempre é fácil. Especialmente para um escritor, que, por ofício, vê-se obrigado, mais que o comum das gentes, a dar rédeas soltas à imaginação. O momento criador é um ato de difícil repetição. Anos depois, nem sempre será fácil identificar o sentido exato daquilo que se escreveu. Na tradução, o próprio autor tende a encontrar-se com inúmeras bifurcações, muitas vezes as mesmas que depararia outro tradutor qualquer daquela obra. Os labirintos da criação não são fáceis nem para aquele que os construiu.

O encontro com o próprio texto pode produzir as tentações mais irrefreáveis. A tentação de corrigir-se, por exemplo. Pessoa a sentiu, e por ela se deixou levar, com a plena consciência de que a correção melhorava o original. Qualquer semelhança com a tentação vivida pelo tradutor do texto de outrem não será mera coincidência.

Traduzir-se também será um encontro com suas próprias teorias tradutórias. Raro momento para pô-las à prova, para testá-las numa situação-limite em que o tradutor, por menos experiência que tenha no ofício, se vê em posição privilegiada. Muitos tradutores desejariam vestir essa pele, estar nessa posição, ou em posição que lhes conferisse contato direto com o autor. A experiência da autotradução revela a teoria que realmente vige na prática. Aquilo que o autor cobra de seu tradutor-outro também pode ser dele cobrado. E, autor-tradutor, tradutor com mais autoridade, talvez dele se possa cobrar com mais razão, e com mais rigor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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