A constante atualização da tradução

“As traduções, como nós e tudo o que nos cerca, não podem deixar de ser mortais” (Rosemary Arrojo)
01/08/2002

“As traduções, como nós e tudo o que nos cerca, não podem deixar de ser mortais” (Rosemary Arrojo). Queria começar assim esta coluna, relembrando e reafirmando essa condição mortal da tradução e do texto em geral, para falar um pouco sobre a necessidade de uma constante atualização da tradução. Não tem tradução que resista mais do que 50 e poucos anos, ou tem? O estranhamento é diretamente proporcional à distância no tempo. Traduzir e retraduzir é sempre preciso, demanda das novas gerações.

Agrada, às vezes, o gosto de antigo no toque do papel e no sabor das palavras. Agrada, mas também embaça o fascínio do novo e do atual. Ainda mais hoje, quando a aceleração do tempo reclama a rápida destruição ou esquecimento do quase-novo, meio-velho, para que o substitua o novo em folha. Mas não é só isso. Mesmo em condições mais “normais” de tempo e espaço, refazer faz-se necessário. É o encanto do novo mesclado à necessidade, mera necessidade, de facilitar a compreensão, a comunicação.

Os novos, mais que necessitam, talvez, merecem receber novas traduções de novos e velhos clássicos. Chega uma hora em que, mesmo dentro de uma mesma língua, a tradução (ou atualização) se torna indispensável. Quantos falantes de inglês podem hoje ler Shakespeare no original? Quantos falantes de português poderão ler Machado de Assis ou Dalton Trevisan daqui a cem anos? Digo, ler e entender.

“Cada geração deve traduzir os clássicos de novo”, dizia o poeta inglês John Dryden. Imposição dos tempos que chegam, a necessidade da retradução advém da constante corrosão das referências culturais, em geral, e da incorrigível efemeridade da linguagem, em particular. No Brasil, temos acompanhado nos últimos tempos o surgimento de uma série de retraduções de clássicos. Shakespeare nos chegou, há relativamente pouco tempo, revestido de uma linguagem mais moderna e mais obscena, contrastando com a roupagem tão sisuda que lhe foi conferida por tradutores anteriores. Boris Schnaiderman andou ele mesmo retraduzindo um Dostoiévski que já traduzira antes. A retradução é filha direta da constante sensação de descontentamento, por um lado, e da necessidade de afirmação de idiossincrasias, de outro. Às vezes, pelejas de egos.

A Bíblia é talvez o melhor exemplo dessa constante necessidade de retraduzir. Nos últimos anos têm aparecido versões da Bíblia em linguagem contemporânea, inclusive em português, especialmente por obra de igrejas mais novas e modernas, movidas pelo desejo de comunicar-se (para o bem e para o mal) de forma mais eficaz e exitosa com seus fiéis. É um fenômeno que atesta essa inevitabilidade dos refazimentos periódicos.

Essa ausência de unanimidade em qualquer processo de tradução, crítica literária ou leitura em geral joga o tradutor em posição de interminável constrangimento e desconforto. Impossível agradar, mesmo a poucos, mesmo a si mesmo – que o diga o Boris Schnaiderman. Aperfeiçoar é preciso.

A solução, parece, é retraduzir, sempre. Movimenta a indústria editorial, dá trabalho a novos tradutores, funciona como elemento de fecundação da língua. As obras traduzidas na “época de ouro” da tradução brasileira (anos 50 a 70) já pedem novas versões, com sabores mais próximos à língua em voga hoje. É uma forma de despertar em novas gerações o prazer de ler — em sua própria língua.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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