A chave da tradução

Rasguei tudo o que sabia sobre a tradução
26/02/2017

Rasguei tudo o que sabia sobre a tradução. Toda a vã teoria. Tudo o que não fosse meramente idiossincrático. A percepção dos sentidos me parecia por demais individual. Sequer aproveitei aquilo que colhi das notas, das “notas sobre a tradução”.

O que importava, o que agora importa, é achar a chave do pensamento do autor. Nem mais nem menos. Só a chave, aquela que nos guia diretamente à alma do texto e nos faculta acesso à melhor forma de vertê-lo em outra fôrma.

Achar a chave e afinar o estilo, apurando a sensibilidade. Se preciso — e tantas vezes é preciso —, tantalizar os sentidos para deles extrair o sumo traduzível. Assistir àquele desfile de palavras crepusculares, moribundas, mas ainda exalando fios fátuos de significados. Deixar que decantem por si, ao fundo. Rejeitar o mero conjunto de sentidos já sancionados. Depois, lá no fundo, recuperar o núcleo sêmico, depurando-o dos excessos da interpretação. Para depois recobri-lo com toda a minha idiossincrasia. Hipocrisia demais, seria?

Pouco importa. Com a chave em mão, tudo mais fácil agora. Acalma até o texto, sempre instável, sempre eriçado, como o mar tocado por vento forte. Às vezes vagalhões rolando, entrechocando-se. O tradutor à deriva.

A tradução teria de ser assim: tranquilizar os sentidos de um texto irrequieto. Amansar a tempestade. Bastava certa intuição sobre as verdadeiras intenções do autor. Sondar os veios ocultos de pensamento que percorrem os escritos em seus subterrâneos. Mergulhar a chave e, como por milagre, apaziguar esse mar proceloso de palavras atarantadas.

Domar o texto, essa soma de inconstâncias que nos fascina, leitores, e nos desespera, tradutores. Buscar uma sorte de ajuste continuado do desequilíbrio que, a cada instante, parece querer formar-se na superfície.

Aguardar, antes da tradução, a lenta dissolução operada pelo solvente universal dos sentidos: o tempo. Seria então necessário, agora sim, recriar. Reproduzir era fora de questão e, principalmente, já parecia fora do alcance. Ante a dissolução, diante das mesmas velhas alternativas, optar pelo novo.

Tradução não requer apenas arte, mas esforço. Não se devem descartar, mas tampouco exigir, arrebatamentos de inspiração. Algo mais raro e mais difícil pode bastar: uma modificação de estruturas mentais que produz interpretações radicalmente novas. E não se trata aqui de aguardar passivamente o escoar do tempo.

Não aceitar a receita da passividade: a doce e fútil noção de que os sentidos aderem às palavras de maneira permanente e indelével, não sendo nem o tempo capaz de separá-los. Ao contrário, crer que os significados se movem constantemente, exigindo sempre novas palavras para sua plena expressão. Entender que o rumo da escrita é errático: sua trajetória não é nem a que o autor presumiu nem a que o tradutor ensaiou. Vale a rígida ditadura do leitor.

Mas não desanimo, não. Alongo um olhar tranquilo, esticado e sem pressa, que se vai lentamente acostumando à penumbra e começando a divisar os contornos. Tenho só que achar a chave. Meu muiraquitã com o condão da tradução perfeita.

Com a chave, respirar fundo a atmosfera elétrica e elástica do texto. Palavras que se aspiram para, cérebro adentro, tocar todas as possibilidades de sentidos. Depois, calcular a medida precisa de paixão a injetar em cada linha, em cada entrelinha. Quanto ardor você, tradutor, propõe inserir no texto? Não se desespere. Só queremos toda a sua alma.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho