A atividade por excelência da mente humana

O historiador da arte Jorge Coli volta e meia faz incursões-reflexões pela teoria da tradução
01/09/2001

O historiador da arte Jorge Coli volta e meia faz incursões-reflexões pela teoria da tradução. Incursões, aliás, muito felizes pelo equilíbrio e pela ponderação — pela maneira mais refletida e menos apressada de encarar tudo o que está em jogo no jogo da tradução. E o segredo do jogo, para mim, Coli desvendou nesta frase: “Ao defrontar-se com um original, mesmo escrito em sua língua materna, o leitor estará sempre traduzindo: para a cultura de seu tempo e de seu meio, para o universo mental que é o seu”.

Daí talvez certo desprezo pelo ato tradutório, como algo fácil de fazer, como coisa banal, mecânica, quase automática. Idéia que não combina com tantas críticas de traduções que se lêem por aí. Como, então, uma tarefa tão banal torna-se tão difícil de acertar, de agradar? Por outro lado, por que tanta prevenção pela tradução, tanta idolatria do “original”.

Pois ler “no original”, como assinala Coli, é motivo de arrogância na academia. Por essa ótica, só quem lê “no original” é que de fato penetra no âmago do pensamento do autor. Só esse leitor privilegiado tem a chave para decifrar todo o verdadeiro significado da obra. Só ele, o hierofante, é que compreende. Depois, com sutil superioridade, revela os segredos aos pobres mortais da massa ignorante.

Quem circula por meios acadêmicos, certamente já sentiu no ar esse desprezo pela tradução, tida como algo inferior, próprio para incapazes — os que fazem e os que lêem. Há um quê de esnobismo nisso tudo, de arrogância intelectual tingida de certa ingenuidade, fruto de falta ou falha de reflexão.

Mais humildade e agudeza de espírito teve o poeta Paul Valéry, ao contestar a autoridade do autor e do “original”. Depois de posto no papel e espalhado, o texto é um objeto fadado à manipulação. Só pode ser usado via manipulação. Não pode ser guardado, enclausurado, encapsulado, protegido. Cai na vida e frutifica. Ao autor cabe a propriedade intelectual, o “direito de cópia”, mas não o controle da vida e evolução do texto. O texto é como um filho travesso, irrequieto e manhoso ou mesmo tempo, pronto a aprontar com o pai e todas as visitas da casa.

Mas isso é sinal de vida e viço, vigor e verdor. Cada leitura é uma travessura, uma bendita e revigorante malcriação. Cada leitura insufla vida nova no texto, sopra para longe a poeira dos cantos mal iluminados. Quem quer o acúmulo de pó e musgo joga contra, joga pela nociva superproteção. Joga erguendo paliçadas em torno do original, pensa em protegê-lo da contaminação.

A combinação dessa arrogância acadêmica com a acidez da crítica da tradução forma um quadro dramático: um ofício ao mesmo tempo mecânico e quase impossível, que gera um produto inferior — algo portanto a evitar. Algo que não se deve fazer nem ler. Produto inferior para gente inferior.

Talvez não se deva traduzir nada. Se traduzir é depreciar, por que fazê-lo?

A resposta está, talvez, na mente humana. Contestando quem dizia que não se deve traduzir nada, o crítico, tradutor e historiador de literatura August Wilhelm Schlegel respondeu que a mente humana praticamente só faz isso: traduzir. Que, de fato, a soma total da atividade mental é precisamente esta: tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho