A alma da tradução

Ao ser traduzido, o autor perde a sua alma?
Joaquim Nabuco
11/06/2016

“Traduzir Ruskin em francês, ou Renan em inglês; perderiam a alma. A alma do escritor é feita em grande parte de sua língua. De uma raça a outra, duas palavras imateriais não podem ter o mesmo valor, nem o mesmo peso.” Palavras de Joaquim Nabuco, citadas por Wilson Martins em sua monumental História da inteligência brasileira.

Verdadeira defesa da intraduzibilidade da essência do autor e, por consequência, de seu texto (pelo menos em sua condição de texto autoral). Até onde chegaria essa verdade?

Paulo Leminski, em seus Anseios crípticos, escreveu algo ligeiramente similar: “…nossa língua materna é a substância de que é feita nossa alma”. O poeta não parece apontar, com isso, para a intraduzibilidade do autor ou do texto autoral. Mas salienta fortemente a importância da língua materna como elemento de formação e individualidade de qualquer pessoa — um escritor, por exemplo.

Nabuco ressalta a singularidade de cada língua — usando como exemplo dois escritores de sua predileção. Destaca também que, “de uma raça a outra”, ou de uma língua a outra, duas palavras “imateriais” não terão nem o mesmo valor nem o mesmo peso. Não terão significados plenamente equivalentes, em todos os sentidos. Perderão algo nessa arriscada travessia.

Sobressai aqui a imaterialidade da palavra. Não se trata da tinta no papel, nem do jogo de luzes e contrastes na tela, mas daquilo que deve evocar cada um desses conjuntos de sinais. O peso e o valor que deve evocar toda palavra.

Ruskin e Renan, para Nabuco, perderiam a alma se traduzidos do inglês e do francês, respectivamente, para qualquer outro idioma.

Muita coisa se perde numa tradução, não há dúvida. Talvez seja a alma apenas mais uma dessas coisas. Alma que poderia significar “identidade literária” ou “estilo”. O estilo próprio do autor e, mais que isso, o estilo do autor expresso em sua língua materna.

Jean-Pierre Brisset, citado por Michel Foucault na mesma obra de Martins, dizia que seu livro La Science de Dieu “não pode ser inteiramente traduzido”. Foucault infere que ele (o livro, ou quem sabe o próprio Brisset) “permanece imóvel, com e na língua francesa, como se ela fosse de si mesma a sua própria origem”. Novamente a intraduzibilidade — nesse caso com uma pitada de autoexaltação por parte de Brisset.

A obra de Brisset pareceria inamovível de seu ambiente francês. Ambiente que teria a característica toda especial da originalidade — uma língua que não deve nada a nenhuma outra. Que não tem tributários que para ela concorreram, embora possa ter descendência. A língua original, a mais próxima do próprio Verbo, que serviu de elemento de expressão de um tema nada menor: a ciência de Deus. Foucault, novamente citado por Martins, diria que a pesquisa sobre a origem das línguas, com Brisset e outros, começava a “derivar pouco a pouco para o lado do delírio”.

Mas Brisset, aparentemente, não queria individualizar o francês. Se assim não fosse, não teria afirmado, conforme Wilson Martins, que “a origem de cada língua está nela mesma”. Não apenas o francês, mas qualquer outra língua dispensaria tributários — o que, do ponto de vista atual, não deixa de parecer um completo disparate.

Sejam quais forem as origens das línguas, contudo, parece claro o conceito de impossibilidade de uma tradução completa, ou que transplante também a “alma”, tanto em Brisset como em Nabuco. Difícil pensar em algo mais perto da verdade, desde que se tenha alguma fé na alma do texto autoral.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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