O foco do romance

A principal intenção da frase-síntese é estabelecer um foco com começo, meio e fim, mas é preciso estar seguro do que se quer escrever
Ilustração: Aline Daka
01/08/2020

1.
O “foco” de que fala o título não deve ser entendido na acepção de “foco narrativo” e seu emaranhado de desencorajadoras espécies e subespécies — essa é outra história, que logo terá seu tempo — mas, sim, no saboroso sentido que os jovens atuais atribuem ao termo, significando a atenção fixa nalgum objetivo. Aqui, trata-se de não perder o foco do romance que se está a escrever. Essa proposta evoca o Ulisses da epopeia. Finda a guerra, o herói deve retornar a sua Ítaca. Ele enfrentará com gosto mil peripécias graças à meta lá à frente: reencontrar sua terra e sua amada Penélope. Uma das tribulações mais conhecidas à singradura é o canto das sereias. Essas míticas figuras femininas, com suas vocalizações musicais, querem desviá-lo da rota. Por sabê-las irresistíveis, ele ordena que seus marinheiros o amarrem ao mastro do barco e veda os próprios ouvidos com cera de abelhas; não pode ouvir os cantos, e, se os ouvir, não terá como ir ao seu encontro. A astúcia funciona.

2.
Ulisses é o ficcionista, e o trajeto, a sua escritura. Ítaca é o romance pronto. Durante a escrita de uma narrativa, o ficcionista sofre empecilhos de toda ordem: conselhos dos amigos para dedicar-se a algo útil; ausência de tempo e de um espaço para escrever; empenho em ganhar dinheiro; incompreensão dos familiares; ultimatos do amor — enfim: as adversidades externas surgem de todo o lado e o amarguram à morte, pois o território da literatura só é necessário e límpido para quem a pratica. Mas há outra classe de óbices, esses internos, decorrentes das variadas percepções acerca do que se está escrevendo. Dentre todos os percalços vencidos por Ulisses, o canto das sereias é o mais emblemático, pois não se tratou de uma luta explícita contra alguma “força do mal”, tais como a bruxa Circe ou o ciclope Polifemo, mas, sim, de uma sedução, via de regra mais difícil de ser subjugada. Dentre as seduções que acossam o escritor, a mais frequente decorre da ideia de alterar o foco do romance.

3.
As alterações de foco, quase sempre, e na maior ingenuidade, visam atender a alguma ideia ocasional, e decorrem da pergunta tão estimada pelo mundo anglo-saxônico: what if? O ficcionista fará algumas vezes a si mesmo essa sinistra questão: “e se?”. E se eu matar a personagem Cláudio? E se Maria, em vez de acabar com o coração partido, se reencontra com sua paixão de juventude? A mais dramática: e se eu modificar totalmente o começo? E a pior de todas: e se eu mudar o fim? Quem não se viu às voltas com essas atrações? Elas fazem parte de um processo natural de elaboração da narrativa, mas podem tornar-se catastróficas quando ocorrem e são atendidas, não no início, mas lá pelas páginas tantas. Um complicador desse quadro: o ficcionista, imaginando-se firme em sua rota de bons ventos, nunca estará preparado para a emersão dos monstros marinhos, e o resultado poderá ser uma nau errática, e o cenário mais provável é o encalhe num baixio ou a ancoragem num porto hostil.

4.
Para não haver a perda do foco, é preciso, antes de tudo, estar seguro do que se quer escrever — é a previsão, tratada em pormenor na coluna do mês de julho. E o meio mais indicado para consolidar essa certeza é condensá-la numa frase-síntese. Alguns identificam essa frase informativa e conceitual com a palavra sinopse, correndo o grave risco de entrar num dédalo semântico, mas às vezes é inevitável chamá-la por esse plurivalente nome: mas uma sinopse de filme da Netflix não tem nada a ver com a sinopse de um romance. Para ser possível entender a utilidade — não a necessidade! — dessa frase-síntese, é preciso tomar o processo pelo inverso: depois de lido um romance, o que fica na cabeça do leitor não é toda a história, mas, sim, uma frase única, redutora, intuitiva. Por exemplo: ao fechar as páginas daquele famoso e grosso romance do século 19, o leitor poderá dizer a um amigo do que se trata, e será mais ou menos assim: um jovem, atormentado por sua simultânea onipotência e fraqueza, mata duas pessoas e vê-se tomado por culpas e dúvidas derivadas de seu ato, que trazem à tona 01uma discussão sobre o bem e o mal, ao mesmo tempo em que se vê investigado e pressionado pela polícia, até que, convencido por sua amiga, confessa o duplo crime e é castigado com a prisão. Se essa frase-síntese formulada pelo leitor corresponder àquela que o ficcionista elaborou antes de escrever o romance, é porque o ficcionista teve êxito em seu propósito — uma simpática sensação que deve ter ocorrido a Dostoiévski ao ver seu Crime e castigo nas livrarias e ao perceber o entusiasmo de seus contemporâneos.

5.
É possível que o ficcionista se assuste e ponha desde logo um argumento: não consigo formular previamente uma frase sintetizadora, meu romance é tão cheio de episódios que não dou conta em poucas palavras tudo o que quero dizer. Seria um argumento aceitável, se não decorresse de um equívoco. Veja-se a frase-síntese da Criação, segundo o Gênese: “No princípio Deus criou o céu e a terra”. O que vem depois são particularizações: Deus criou a luz, as águas, o firmamento, os animais, o homem, a mulher etc. O quadro inicial, portanto, completa-se com suas circunstâncias específicas. O equívoco de que se falava é o de imaginar que todo o romance deva constar do breve enunciado de uma frase. Não. Basta concentrar-se em seus elementos essenciais, que constam abaixo, no parágrafo 7. Se o autor da Bíblia conseguiu essa formidável frase para narrar a criação do universo, imagina-se que a síntese de um romance será tarefa menos difícil.

6.
A frase condensadora se refere à res, não ao modus. Traduzindo para a prolixidade da língua portuguesa: na frase-síntese será dito o que vai acontecer, mas não a maneira como vai acontecer. Assim, a ação “convencido por sua amiga”, que consta da síntese do romance de Dostoiévski, encerra uma série de maneiras possíveis: será convencido pelo amor ou pela chantagem ou por argumentos morais ou lógicos, enfim, por tudo o que parecer verossímil ao ficcionista. E aí reside a glória e o encanto da literatura: abrir, para quem escreve, contínuos e inesperados espaços de liberdade.

7.
A principal intenção da frase-síntese, percebe-se, é estabelecer concretamente um foco, e um foco completo, com começo, meio e fim. Eis a diferença radical da Netflix. A síntese do romance deixará claro quem é personagem central (“um jovem”); como ele é interiormente, qual sua questão essencial (“atormentado por sua simultânea onipotência e fraqueza”); qual a situação crítica (“mata duas pessoas” e “se vê investigado e pressionado pela polícia”); qual o conflito (“uma discussão sobre o bem e o mal”) e o fim (“convencido por sua amiga, confessa o duplo crime e é castigado com a prisão”). Bem-vinda lucidez para quem pensa começar um romance! E aqui não se fale em spoiler, pois essa frase será apenas instrumento de trabalho do ficcionista, a que ele dará acesso apenas a quem quiser, e se quiser. Depois do romance pronto, então, poderá cotejá-la com o que dizem os leitores e essa ação, como já visto, será a pedra de toque de sua competência narradora.

8.
Reiterando: a frase-síntese não é necessária, mas útil: é uma bússola, a mesma que Ulisses não tinha, mas certamente conhecia a posição da Ursa Menor, a inclinação do sol, a morfologia dos litorais, a direção dos ventos. Com a frase em mente, o ficcionista não terá ouvidos para as sereias e não ficará perdido durante a realização de seu livro. Se houver arrependimento, será quanto à qualidade e à originalidade da ideia, não quanto a sua execução. O bom porto está garantido. Já é uma esperança. Talvez, um consolo.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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