Vila-Matas e o gol

Dois homens numa livraria iniciam uma conversa que muito me interessa: abordam a obra de Enrique Vila-Matas
Enrique Vila-Matas, autor de “Bartleby e companhia”
01/06/2012

Estico-me na cama à espera da entrevista. Abandono a família na sala e me recolho ao quarto. Após posicionar os travesseiros em busca do conforto desejado, procuro com certa ansiedade o canal na televisão. Cheguei em cima da hora. As vinhetas anunciavam o início do programa. Logo, dois homens numa livraria iniciam uma conversa que muito me interessa: abordam a obra de Enrique Vila-Matas. De um lado o entrevistador; do outro, o escritor catalão, que é lido com devoção pelas hostes literárias. De início, nota-se uma ironia escorregando pela mesa, roçando os livros. Uma ironia fina, delicada. Isso muito me agrada. Em pouco tempo, Vila-Matas já está perambulando pelas ruas de Dublin, conta histórias de um cemitério, fala com entusiasmo da idéia de situar seu mais recente romance (Dublinesca) no sexto capítulo de Ulysses, de James Joyce. O autor se alegra ao relembrar sua passagem por Paris, seu contato com Marguerite Duras. Falava de uma suposta crise na literatura atual quando ele cruzou o limite da porta e me olhou.

Sem retirar os olhos da tevê, descoberto em meu improvisado bunker, elevo com delicadeza o pequeno corpo. Noto que segura um carrinho em cada mão. Deixei-o ali, aos meus pés, tentando improvisar uma garagem para os automóveis. Em 16 de junho, comemora-se o Bloomsday mundo afora. Um bando de aficionados por Ulysses reúne-se para comemorar o surgimento do romance mais amado do que lido da história da literatura universal. É sobre isso que Vila-Matas fala enquanto sinto o fusca roçar minha mão direita. É o sinal para friccionar as rodas algumas vezes e soltar o veículo pela improvisada pista. A tarefa exige certa perícia: deve-se medir a força empregada a fim de evitar uma queda brusca no precipício entre as bordas da cama e o chão. Enquanto o carro desliza com paciência pela colcha, ouço Vila-Matas comentar sobre um romance mais ousado e outro mais tradicional. Mas perco quase todo o pensamento.

Ele me olha com curiosidade com um dos carrinhos na mão esquerda. É o fusca azul. O outro, cujo modelo desconheço, ganhara o rumo do despenhadeiro. O vizinho do andar debaixo detesta nossos acidentes de trânsito. Não entendo o que o adorável intruso deseja. Paro, olho-o com dedicação e percebo que balbucia algo. Agora, está estirado na cama. Passeio os dedos entre as solas dos pés e a barriga. Ele contrai o corpo e solta a primeira gargalhada. Ao fim, implora: “mais”. O esse se desdobra num eco suave por todo o quarto. Maisssssssss. Percebo na tevê que a entrevista é retomada após o intervalo.

Vila-Matas não implora a minha atenção. No entanto, o pequeno ladrão de entrevista me finca os olhos, esparramado no cobertor: “mais”. Passo a descobrir cada pedacinho possível em busca de outras gargalhadas. Às vezes, é possível enganar o tempo. Quando lhe digo “onde está?”, ele fecha os olhos e esconde-se do mundo para dentro de si. Ao abri-los, defronta-se comigo. E escancara todos os dentes possíveis. Está feliz e não tem vergonha disso. Empresto-lhe minhas mãos para que possa se esconder. Com elas sobre os olhos, silencia. Em seguida, como se estivesse perdido há décadas numa ilha deserta, pula enlouquecido sobre a cama. Encontrara novamente a civilização. Preocupo-me em mantê-lo em equilíbrio sobre a cama. Sou o comandante do navio solitário em alto-mar. Na tevê, Vila-Matas parece dizer “Moby Dick”. Não sei ao certo.

Cansado das brincadeiras na cama, ele desliza o corpo até o chão. Primeiro, arrasta as pernas para as bordas; em seguida, deixa o corpo aterrissar com suavidade no assoalho. Sai do quarto em direção à sala. Em poucos segundos, está de volta. Segura com entusiasmo a sua bola amarela. Eu tento salvar o final da entrevista de Vila-Matas. Parado na porta, ele parece não entender a minha indecisão. Olho para a tevê. Finjo não notar a pequena e ansiosa presença a minha frente. Sem qualquer receio, grita: “papai”. Faço de conta que não ouço. O grito alcança o volume máximo: “papai”. Viro o rosto em sua direção. Ele simplesmente completa a frase: “papai, gol”. Sem verbo, sem nada. Apenas as duas palavras: papai-gol. Na tevê: Vila-Matas. Antes de deixar o quarto, ainda consigo ouvir um pedaço da frase em que o autor espanhol comenta um texto de Ricardo Piglia sobre como a obra ficcional dele, Vila-Matas, compõe uma espécie de “história imaginária da literatura”. Não tenho tempo de pensar no assunto. Sou arrastado pela mão até a sala, onde um estádio lotado aguarda uma partida de apenas dois jogadores.

Vila-Matas também gosta de futebol.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho