Dizem que Deus é infinito. Carreguei o peso da eternidade por toda a curta infância — este espaço onírico que nunca acaba. O Cristo pregado na sala, espetado ao lado dos ramos bentos à cabeceira da cama da mãe, nunca profanada pelo pecado da carne (o pai, quase sempre, a fartar-se na cachaça ou em entranhas desconhecidas), olhava-me talvez com certa indiferença ou incredulidade. Quando Gauguin pintou o seu Cristo amarelo, e as dóceis camponesas ao redor, não desconfiava de que suas cores me ofuscariam os olhos daltônicos vida afora. Nunca esqueço a manhã de neblina e sol tímido ao descobrir a pintura num livro de orelhas desbeiçadas nas estantes do velho ônibus transformado em biblioteca no maior parque de C. Eu era criança, mas a sombra dos braços crucificados me acompanhava pelas horas sonolentas dos dias.
Atravessavam-me pensamentos desconexos, atrapalhados e até indecentes, na tarde abafada em pleno inverno, quando meu filho — um menino magro de cabelos e gestos desgrenhados — tentava aguçar minha curiosidade em direção ao fim do mundo. O meteoro caiu onde hoje está o México, dizia-me com o dedo em direção à tevê. O programa, talvez nestes canais em algum lugar desconhecido do emaranhado digital, reproduzia o ocaso dos dinossauros. Coisa mais que sabida: a viagem descontrolada do meteoro, a imensa nuvem de poeira, as temperaturas insuportáveis, o fim da comida, a extinção de todos os dinossauros. Ou quase. Dizem que ainda estão por aí nas penas dos pássaros — algo muito complexo para meus estropiados conhecimentos. Difícil imaginar que o tico-tico jogado na panela no almoço da infância era uma lasca de tiranossauro rex.
Mas o que chama a atenção a ponto de me imobilizar é a ideia daquele pedaço disforme de ferro, níquel, rocha e solidão viajando na imensidão do universo rumo à Terra. Um cavalo xucro solto num pasto sem fronteiras. E, ao fundo, no cenário vazio, a escuridão incontrolável, o infinito — o eterno infinito a nossa volta. Sem querer, solto uma frase descabida: “Como se Deus estivesse cortando a unha do dedão e um fiapo se desprendesse em nossa direção”. “O quê, pai?”, pergunta meu filho, um tanto confuso com minha canhestra tentativa de menosprezar a eternidade.
A mãe tinha um pacto com Deus: livrar os filhos do inferno e entregá-los ao aconchego divino. A ignorância — a falta de qualquer informação certeira sobre o paraíso — era mais reconfortante do que a vida ao redor: de uma pobreza doída nas sovas que o pai nos entregava sem o mínimo remorso aparente. O jeito era trilhar o caminho da igreja, agarrar-se às barbas sagradas, não titubear diante da possibilidade de um milagre. O pulo desesperado à salvação. No roteiro traçado com devoção estavam as modorrentas aulas de catequese. A ladainha envolvia-nos numa crosta de tédio e ânsia pela liberdade. A magra professora, a quem insistíamos chamar de tia, dominava as palavras da Bíblia, desvendava cada segredo escondido nos versículos e nos resumia a sabedoria de Deus. Era por esta estrada que deveríamos seguir: uma estrada sem pecados ou tentações — nenhum desvio nos levaria ao inferno.
Entre tantas palavras arcaicas, o que mais me assustava eram números ordinários, simples, de fácil contagem. Na tábua de salvação, os dez mandamentos sobressaíam feito um dragão de fogo a bufar sobre nossas cabeças piolhentas. Eram repetidos com insistência de tempos em tempos, enfiados em meio a uma oração, a um novo ensinamento. Tudo se resumia a míseras (mas infinitas) dez frases fixadas numa folha de papel na entrada da sala celestial. Ali habitavam nossa salvação ou nossa desgraça plenas. Fazia cálculos imaginários diante da possibilidade de um pecado levar a outro, levar a outro, numa sequência abissal, para, enfim, arder nas chamas do inferno. Logo de cara, teria de “adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas”. Mas sempre achei a mãe muito mais importante. Um raciocínio bastante ingênuo. Até porque Deus é eterno. E a mãe, numa manhã de sol, estava morta enroscada às cobertas. Então, eu multiplicava o primeiro mandamento por outro que me causava certo incômodo: o sétimo — “não furtar”. Desde sempre furtei uvas, morangos, mimosas e ameixas no vizinho. Comia escondido debaixo do porão, entre ripas, poeira e ratos. O resultado da minha perdição chegava a sete. A aparente simplicidade do cálculo escondia temores indescritíveis, mistérios insondáveis. E só aumentava. Multiplicava o sétimo pelo nono mandamento (“guardar castidade nos pensamentos e nos desejos”), que tanto me assombrava nas noites de descobertas. E minha perdição se elevava a sessenta e três. As chances de o inferno ser minha morada eram desoladoras. Ao chegar ao décimo mandamento (“não cobiçar as coisas alheias”), a danação era completa. Impossível não cobiçar a roupa nova do menino ao lado, o tênis brilhante, o boné multicolorido.
Ao embaralhar todos os mandamentos, os números cresciam absurdamente numa folha de papel escondida entre preces e pedaços da Bíblia. Os cálculos não tinham qualquer sentido prático ou transcendental. Eram mais um passatempo, uma pífia tentativa de um pragmatismo ao desconhecido.
Mas por mais ocupado que esteja, Deus sempre encontra tempo para colocar as coisas no seu devido lugar. De casa até a catequese, percorria alguns quilômetros a pé, desviando de pedras e do matagal no carreiro que só alguns anos depois se transformaria em rua. Numa tarde de sábado, cabisbaixo feito um boi rumo ao matadouro, vi o retângulo plástico brilhar sobre o capim, como se tivesse sido colocado ali pela mão de Deus. Catei a calculadora com a pressa de um esfomeado. As teclas e seus números eram macios. Apertei-as à espera do milagre do cálculo. Nada. Um vazio imenso feito um meteoro navegando pelo universo inundou a pequena tela. Pressionei afoito e com força todas as teclas. Nada. O nada se reproduzia. Contrariava um dos mais importantes preceitos filosóficos. Do nada vem a desilusão. Nenhum número reluzia na tela. Meus cálculos não levavam a lugar algum.
Ao manusear a calculadora, descubro uma carcaça, um animal ao relento abandonado aos urubus. A pança da máquina estava vazia. Nenhum circuito, nenhuma peça, apenas o nada habitava aquelas entranhas — uma corruíra eviscerada. Mas não poderia desprezar a possibilidade de impressionar meus cúmplices no reino de Deus. Depositei a calculadora na pasta plástica. E segui em busca da salvação.
De propósito, deixei a máquina de multiplicar mandamentos à vista dos demais. Você tem uma calculadora! O olhar admirado enchia-me de orgulho, vaidade e outros pecados. Absorvia tudo com a empáfia sardônica dos vencedores. Mas a delícia do paraíso logo esvaiu-se em golfadas de escárnio. Ao menor descuido, M. — a menina loira de olhos azuis, que me fazia profanar o nono mandamento na ânsia dos dedos — escancarou a mentira. É falsa. O espanto retumbou pelos vãos sagrados da igreja. Não funciona. Não serve pra nada. Que ridículo. As frases, pilhérias detestáveis na língua de pequenos demônios, saltavam de boca em boca enquanto o arremedo de calculadora saltava de mão em mão. Não havia cálculo possível para medir minha raiva e vergonha.
Pensava nas ancestrais risadas de dentes de leite quando meu filho, ainda de olho na extinção dos dinossauros, arrancou-me da nostalgia infantil ao perguntar: “Sabia, pai, que é possível viajar no tempo?”. Sem entender a pergunta, apenas o olhei com espanto e respondi: “Sim. Eu sei. É porque, assim como Deus, os números também são infinitos. Ainda mais numa calculadora habitada apenas por almas”.