A mãe morreu. Não recebi bilhete, telefonema ou telegrama. Nem o médico a me dizer “sinto muito, sua mãe morreu”. Encontrei-a morta na cama às 7h30 de segunda-feira. O sol ardia no telhado. O bairro se movimentava. Estava morta sobre as cobertas bagunçadas. Numa última tentativa de encontrar a vida, arriscou libertar-se do catre a que o câncer a condenara. As pernas magras balançando na altura mínima entre o estrado e o piso frio. O último gesto antes do fim. O corpo caiu de lado: cabeça e braços fora de sincronia. Toquei-lhe a coxa com firmeza “acorde, mãe; estamos atrasados”. Ela me ignorou. Mais uma vez a morte entrou pela porta da frente, escancarou as cortinas e deitou-se no colchão de pouca espessura. A mãe está morta. Preciso aprender a lidar com a máquina de lavar roupas.
Há vários botões. A máquina está nos fundos de casa — quase invisível. Eu sempre deixava as roupas num cesto plástico. Logo, estariam limpas e passadas. A mãe apontava para a pilha de camisetas, camisas, cuecas e meias sobre a tábua de passar. Eu agradecia. Amávamo-nos de uma maneira estranha: pelo aroma do amaciante de cor azul céu. A diarista explica como devo proceder. É simples: sabão e amaciante em seus respectivos recipientes. Nunca se deve misturar roupas claras e escuras. Isso me parece óbvio. A máquina suporta até cinco quilos. Quanto pesa uma camiseta? Tenho uma balança. Comprei-a para pesar a mãe todos os dias. Nunca deu conta de saciar a fome do câncer. A cada manhã, a balança emagrecia alguns gramas. Agora, vou utilizá-la para pesar o que sobrou: minhas roupas.
Era madrugada. Eu sonhava com a mãe. Um sonho cuja lembrança se apagou. Ouvi palmas. Alguém batia palmas ao longe. Uma música distante. Acordei do sonho com as palmas no quarto. Flutuei. O corpo pesado. Olhei pela janela. Não havia ninguém no portão de casa. A luz do poste espalhava uma estranha solidão pela rua. Tentei dormir. As palmas invadiram novamente meu frágil sono. Acordei assustado: é a mãe. Desci em disparada a escada em caracol. Encontrei-a sentada na cama, lambuzada no próprio escarro. Limpei tudo com cuidado. Tirei a traqueostomia. Lavei com dedicação na madrugada silenciosa. Lá fora, escuridão. No quarto, a mãe morrendo. Deixei-a na cama. Respirava com facilidade pelo buraco metálico no pescoço. Estava tudo bem. Não dormi mais. As palmas cessaram. Não sei a que horas a mãe morreu. A última coisa que fiz foi limpar-lhe os restos que o câncer insistia em nos entregar.
Sempre compro o amaciante que promete “150 ml grátis”, cujo aroma “natureza” garante roupas macias e perfumadas. Gosto do cheiro da natureza aprisionado num pote plástico e pescoçudo. As roupas ficam macias e perfumadas. Pena que a transpiração excessiva do corpo destrua qualquer fórmula de laboratório. A Johnson & Johnson e a Unilever nada podem contra o suor causado pela morte de uma mãe numa manhã de segunda-feira.
Coloco o sabão em pó no recipiente maior da máquina. O amaciante deve ficar num buraco — espécie de boca de um vulcão — no topo do cilindro. Despejo com extremo cuidado. Ao meu lado, a diarista apenas observa. Diz que se eu fizer tudo sozinho, aprendo mais rápido. Leio as indicações na tampa da máquina. Aperto o botão ligar. Depois, lavagem completa. Regulo o nível da água. Aos poucos, a máquina branca começa a relinchar. Ouve-se um esguicho fraco de água. Camisetas estão em volta do cilindro. Esqueci de pesar as roupas. Mas acho que há menos de cinco quilos. De repente, a respiração da máquina fica mais rápida, ofegante. Lava com gosto minhas roupas. A diarista explica que só preciso esperar, tirar as roupas da máquina e pendurá-las para secar. Coisa simples.
O silêncio da casa me acordou. Olhei o relógio. Hora de levantar. Segunda-feira: dia de quimioterapia. A mãe nunca perdia a hora. Sempre a primeira a acordar. Ficava zanzando pela casa. O cheiro do café me levava para a cozinha. Nenhum barulho. Desço a escada lentamente. A cozinha está vazia. A mãe não está no sofá da sala. O café não está pronto. O sol risca o vidro da janela. Vou ao quarto da mãe. Abro a porta. Encontro-a toda retorcida sobre as cobertas. Um fóssil de esquilo. Os pés para fora da cama. O corpo meio de lado contra a parede. Penso: a mãe dormiu numa posição muito estranha. Aperto sua perna magra. Acorde, mãe; estamos atrasados. Ela não responde. Está fria e dura. A pele flácida, enfim, enrijeceu, ganhou força e rigidez. A mãe está morta. É segunda-feira. Dia de quimioterapia. Ela não precisará mais se agarrar em mim, arrastar-se pelos corredores do Erasto Gaertner, fazer cara de desespero quando uma nova consulta é marcada. Não precisará mais se contorcer toda ao receber a injeção na nádega inexistente. Nunca mais iremos em silêncio a lugar algum.
Tiro a roupa e estendo no varal de alumínio. Depois, é só passar. Isso é simples. Chato, mas simples. Na infância, ajudava a mãe a passar roupa com o ferro a brasa. Tirávamos as brasas do fogão a lenha e enchíamos a pança do ferro quadrado e pesado. Era algo quase pré-histórico. Agora, tenho um ferro a vapor. Bonito e leve. Desliza fácil pelas camisetas, camisas e calças. Vou passar roupas na sala onde a mãe ficava o dia todo. Ela não está mais ali sentada no sofá. Não está no quarto. Não está na cozinha. Não está lá fora agarrada ao portão à espera de nada. A mãe está morta.
O médico chegou rapidamente. Entrou no quarto. Atestou a morte. Deu-me os pêsames. Entregou-me um papel amarelo com o registro da morte. Disse-me que procurasse uma funerária. Saiu porta afora. Entrou na ambulância e foi embora. Fiquei ali com o papel amarelo na mão e a mãe morta no quarto. Fui à funerária. Vieram e depositaram a mãe no carro comprido. Depois, no caixão com flores de plástico. Levamos a mãe ao cemitério. Colocamos no mesmo túmulo da minha irmã — agora resumida a um saco preto cheio de ossos. Quando saímos do cemitério, o sol forte nos aquecia. O céu bem azul.
Um bom dia para lavar roupas.