Tudo acaba num fim de domingo

Quando a menina loira apareceu, a colher estava na tortuosa distância da marmita e a boca
Ilustração: Girassóis, de Van Gogh
30/01/2020

Quando acaba a infância? Íamos sempre juntos. O silêncio nos acompanhava de casa até a movimentada rua de restaurantes a vender polenta e frango gorduroso a turistas felizes. Não havia inquietações, perguntas. Eram desnecessárias. Apenas quietude e obediência. Durante a semana, plantávamos e colhíamos flores. Aos domingos, as vendíamos. Algo mecânico e trivial.

Tínhamos de passar parte do dia santo agarrados à sobrevivência. Nossa cruz balançava na cabeceira da cama. Ora Jesus nos protegia. Ora samambaias nasciam na coroa de espinhos. Quando não estávamos na igreja entranhados na crença da mãe, as grandes latas cheias de flores nos envolviam num abraço nada carinhoso. Às vezes, íamos aos cemitérios. Os crisântemos são boas companhias aos mortos. Vendíamos flores coloridas para embelezar a morte alheia. O sol logo as matava também. Flores mortas a fazer companhia a defuntos. A equação sempre dava errado. Quando a mãe morreu, decidi enfeitar o caixão ordinário (uma fina lâmina de madeira) com flores de plástico. A eternidade artificial foi o carinho possível quando nada mais importava.

Chegávamos bem cedo. A cidade a despertar na vagareza preguiçosa do fim de semana. O pai, ainda azedo pela cachaça do sábado à noite, dirigia a velha Kombi da floricultura. (Há algum tempo, aposentaram a Kombi. Entre lamúrias saudosistas, muitos lamentaram o fim do carro de design reto e pouco criativo. Senti apenas que parte da minha infância segue presa numa Kombi velha e barulhenta.) Nós, aninhados entre latas na parte traseira. O ronco do motor ao fundo nos impulsionava para um lugar aonde nunca queríamos chegar. A mãe ao lado pai. Víamos a silhueta dos corpos que se suportavam na angústia dos dias. Eu e a mãe ficávamos juntos. O pai seguia com meu irmão para outro lugar — cemitérios e ruas movimentadas eram nossos pontos de venda. No fim do dia, o pai voltava sacolejando na Kombi. Às vezes, estava bêbado.

O improviso tinha método. O carregamento de flores — em latas, pequenos potes de barro ou plástico, xaxins — precisava chamar a atenção. Sem saber do daltonismo severo fincado em meus olhos, eu tinha de construir um provisório jardim à beira da calçada. A capenga floricultura ficava próximo a um restaurante de frutos do mar. Era como um intruso no bairro de italianos. A polenta e o frango afugentavam qualquer peixe a nadar por entre mesas barulhentas. Não lembro o nome na placa esbranquiçada na qual um imenso camarão balançava. Era ridículo: barbatanas, chapéu e um cínico sorriso. Perto do meio-dia, os clientes famintos começavam a chegar. Em geral, famílias com crianças ruidosas, aparentemente felizes. O almoço ia até tarde. Muita gente entrava e saía, sempre observada pelo camarão de proporções assimétricas. Nunca havia comido camarão. Mas tinha certeza de que o dono do restaurante exagerara um bocado. E me parecia algo um tanto indigesto.

Torcíamos pelo crustáceo assombroso. Quanto mais gente no restaurante, melhor para nós. Muitas famílias saíam de lá, atravessavam a rua e compravam algumas flores. Só me incomodava um pouco quando chegavam exatamente no momento do meu almoço. A mãe enrolava uma marmita num pano branco. Dividíamos a comida fria em partes iguais. Enquanto um comia, o outro vigiava as flores. Éramos cúmplices na miséria cotidiana. “Camarão é bom, mãe?”, perguntei uma vez. “O quê?”, a quase-resposta seca não me surpreendeu. A mãe era assim: árida com as palavras, um soco sempre lhe saía da boca. “Camarão é gostoso?”, repeti. A pergunta flutuou pelo ar e perdeu-se entre duas azaleias.

Quando a menina loira apareceu, a colher estava na tortuosa distância da marmita e a boca. Congelada no ar, carregava algo como arroz, feijão e ovo. Lembro da voz fina, meio esganiçada: “Eu quero as amarelas, papai”. A mãe enrolou as flores num jornal velho e as entregou à menina. Acho que tínhamos a mesma idade. Mas muita coisa nos separava. E sabíamos disso. O homem estendeu o dinheiro e recusou o troco. Tínhamos de aprender a conviver com a piedade alheia. Pai e filha atravessaram novamente a rua. Uma mulher os esperava diante do restaurante.

Dávamos sorte. Quase sempre vendíamos todas as flores. Quando a tarde cortava mais da metade do dia, os preços eram reduzidos. Algumas plantas mostravam fadiga, um cansaço que se estendia aos nossos corpos, equilibrados sobre caixas de feira. Até a chegada da noite e do pai, tínhamos de nos livrar de toda a carga. Uma ou outra flor podiam voltar à chácara onde morávamos e trabalhávamos. Ali, recomeçávamos a semana à espera do próximo domingo. Teríamos sempre duas opções: o Deus da mãe ou as flores do pai. O pai agora se aproxima da morte — o azedo da cachaça sempre vence no final. Comprarei crisântemos amarelos para decorar o caixão. O cheiro do crisântemo morto é insuportável. Ele não merece minha eternidade de plástico.

Cozinho com pouca habilidade e algum interesse. Até pouco tempo antes da derrota plena para o câncer, a mãe espalhava uma frase pela boca banguela: “Não gosto de camarão”. Sempre que faço macarrão com camarão (uma rima pobre para um prato razoável), ouço as palavras da mãe a cutucar meus ouvidos: “Não gosto de camarão”. Um dia, meio sem assunto, perguntei-lhe: “Por que não gosta de camarão?”. A resposta levou-me de encontro à placa a balançar nos domingos tediosos, a um diálogo interrompido: “Não sei. Nunca comi”.

Alguns domingos são eternos. Saímos de casa no mesmo horário. O pai, a mãe e o silêncio na dianteira. Eu e o irmão entre flores e o ronco bestial do motor na traseira. A Kombi era um pouco melhor que os pangarés que deixáramos na roça. A chegada a C. nos relegou um barulho indestrutível. Ao chegarmos diante do restaurante, a mãe me entregou a marmita e me deu todas as orientações conhecidas. “Você já pode ficar sozinho aqui.” Não reagi à solidão. Precisávamos aumentar as vendas. Cada um em cada canto. Espalhados. No fim do dia, seríamos recolhidos. Organizei a menor floricultura do mundo e esperei. Às vezes, passo pela avenida assustadora. Agora, me parece uma simples rua, com restaurantes de péssimo gosto e lojas de móveis frágeis.

Fiz tudo direito. Caprichei nas embalagens com jornal velho, não errei o troco, olhei para baixo sempre que me miravam de frente, quase não falei. Apenas estendia as flores. E não tive de dividir a marmita com ninguém. O camarão gigante permanecia pregado na placa. Famílias passavam. O domingo parecia não ter fim. O tempo passa mais devagar quando se está sozinho. Quando já não havia quase mais nada para vender, o ruído da Kombi surgiu. A mãe desceu, pegou-me pela mão. O irmão estava aninhado na quentura do motor. Ainda tive tempo de olhar mais uma vez para o bizarro camarão.

A infância acaba num fim de tarde de domingo quando o sol também nos abandona.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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